Extraordinária vida, a de Marjane

"Persépolis" tem concitado uma atenção pouco habitual para filmes de animação, conseguindo destacar-se em territórios tradicionalmente estranhos ao género (um prémio do júri em Cannes no ano passado), e em mercados, como o americano, dominados pelas grandes "máquinas" oriundas dos estúdios da Disney, da Pixar ou da Dreamworks (sucesso de que a presença de "Persépolis" na lista de nomeados para o Óscar de melhor longa-metragem de animação será o mais saliente sinal).

E não é de facto uma animação "como as outras", como as que costumam ocupar os principais espaços da distribuição comercial e da atenção pública. Em primeiro lugar porque, sendo em rigor uma produção francoamericana, trata-se, em termos criativos, de um filme essencialmente francês. Depois, porque é um filme menos "universalista" no seu apelo, mais apontado ao espectador adulto do que às crianças, e ainda porque em vez de propôr "magia" e "escapismo" (é, aliás, quase sempre a preto e branco), se concentra em coisas, digamos, "sérias", que têm muito a ver com a história contemporânea e com a actualidade. Finalmente: porque se trata de uma autobiografia, o que já seria incomum mesmo se a vida retratada fosse comum. Quem se autobiografa é Marjane Satrapi, autora de BD, de origem iraniana, nascida em 1969.

"Persépolis", realizado em colaboração com Vincent Paronnaud, adapta os seus albuns homónimos. Contando uma história pessoal, essa história não pode deixar de ser profundamente determinada pela história colectiva do seu país natal, e o tratamento dessas duas faces da mesma moeda é uma das coisas que mais contribui para o interesse do filme. Marjane tinha cerca de dez anos quando ocorreu a revolução islâmica, facto decisivo na vida dela. Os pais, esperançados de que o novo regime não durasse muito e fosse o produto passageiro de um período de instabilidade política, mandaram-na estudar para o estrangeiro, para Viena. Os anos passaram, o regime afinal não foi passageiro, e Marjane acabou por voltar, para fazer a faculdade no Irão. É este crescimento, "irregular" e não pouco extraordinário, que o filme conta.

E conta-o com alguma "pedagogia" - como Marjane se queixa no segmento vienense, ser iraniana na Europa era quase como ser um "freak", porque toda a gente imagina que os iranianos "são todos uns fanáticos". É por isso que o filme não se esquece de contar um pouco da história do Irão (e de maneira muito bonita, quase como uma "animação dentro da animação") nem de salientar a sua tragédia (a passagem de um regime autoritário para um regime fundamentalista) de modo a deixar claro que um regime político, ainda que teocrático, não tem que ser o espelho do seu povo.

Fora esta pedagogia, que a realidade se esforça por provar necessária (alguém devia mostrar este filme ao senador John McCain, que acha que cantarolar "bomb Iran" não é uma desconsideração aos iranianos), "Persépolis" é ainda particularmente feliz enquanto fábula sobre a resistência individual, sobre as pequenas transgressões à restritiva ordem instituida (traficar discos de Michael Jackson no mercado negro ou, talvez mais significativamente, conduzir um automóvel sem o véu para deixar os cabelos ao vento), e como Marjane viu muitas coisas na sua curta vida não cai na esparrela maniqueísta nem na descaracterização cultural (a maneira como o filme mescla a cultura iraniana, ou persa, com elementos "ocidentais", mescla perfeitamente natural num país que até há poucas décadas vivia virado para o ocidente, é outro atributo do filme).

E é neste balanço que o filme se faz, entre memórias pessoais, calorosas (a personagem da avó, que tem a voz de Danielle Darrieux) e uma espécie de mágoa, mais ou menos aplacada, o suficiente para se poder dar a ver com um certa bonomia, e bastante "panache". Crónica de uma juventude vivida em circunstâncias excepcionais, talvez tenhamos todos alguma coisa para aprender com "Persépolis" e com a sua protagonista.

Sugerir correcção
Comentar