Woody em piloto automático

É altura de admiti-lo: enganámo-nos todos. Tínhamos razões para isso: afinal, parecia que Londres tinha feito bem a Woody Allen, que Scarlett Johansson o teria inspirado de alguma maneira, que, enfim, alguma coisa no velho mestre adormecido teria despertado e "Match Point" (2005), grande filme que fazia pensar nos "Allen clássicos" dos anos 1970 e 1980, seria o relançar de uma carreira que andava demasiado enredada no rame-rame do proverbial filme anual.

Não que houvesse grande mal nisso: ninguém pode esperar fazer obras-primas todos os anos e de nenhum realizador se pode dizer que só assinou clássicos. Mas, no caso de Woody Allen, havia alguma coisa de triste e angustiante em ver as suas marcas registadas e os seus temas recorrentes transformarem-se em desculpas, pretextos, fachadas, muletas, bengalas usadas porque sim. Um pouco como um doente de Alzheimer que perde as suas faculdades à nossa frente - e a comparação só é possível porque Allen insiste e resiste em produzir todos os anos, quer tenha coisas novas para dizer ou não.

Por isso mesmo, desejámos ardentemente que "Match Point" fosse uma estaca zero, um novo ponto de partida, um reencontro com o melhor Woody Allen que se prolongasse nas obras seguintes. O divertido mas levezinho "Scoop" (2006) não confirmou nem desmentiu, limitando-se a adiar a resposta - o que já de si não era grande augúrio. Mas "O Sonho de Cassandra", fecho do "ciclo londrino" do realizador, responde cabalmente à pergunta e confirma todos os nossos piores temores: "Match Point" não foi uma estaca zero, foi mesmo um "fogacho" (fosse Allen um realizador menor e diríamos mesmo que teria sido um acaso). Gostamos de e respeitamos tanto Allen que queríamos vê-lo manter o nível constantemente - fizemos mal. "O Sonho de Cassandra" é duplamente doloroso por isso.

Se "Match Point" era um retorno inspirado ao território do sublime "Crimes e Escapadelas" (1989), o novo filme é uma reciclagem ostensiva e vagamente moralista de "Match Point" em tom de tragédia surda, retomando até a "luta de classes" do filme de 2005. Aqui, dois irmãos londrinos de classe trabalhadora com mais dívidas que ambições são encostados à parede pelo tio milionário, que lhes promete resolver todos os problemas financeiros se eles o desembaraçarem de um contabilista ressabiado. Mas desta vez, para lá do final fatalista que se adivinha à distância desde as primeiras imagens (será da música de Philip Glass?), tudo parece um ponto que se marca, uma lista de tarefas que se vai cumprindo mecanicamente, sem surpresas nem convicção, como quem diz "para quem é, bacalhau basta".

Não é culpa dos actores que "O Sonho de Cassandra" seja tão pouco entusiasmante (embora se deva dizer que também não sentimos neles entusiasmo que possa fazer a diferença); em grande parte é culpa de Allen, porque desde as primeiras imagens percebemos que este é um filme em piloto automático (é certo que Allen nunca foi visualmente o cineasta mais inspirado do mundo, mas vão longe os tempos da sua colaboração com Gordon Willis ou Carlo di Palma...). A verdade é que se não tivesse havido "Match Point" "O Sonho de Cassandra" seria apenas mais um Allen menor, para arrumar na prateleira ao lado de todos os outros com a marca de "visto" enquanto esperávamos por uma "recuperação" que talvez nunca chegasse. Um filme para o realizador e os seus espectadores cumprirem calendário.

Mas houve "Match Point". E, depois dele, "O Sonho de Cassandra" é apenas um mau filme de Woody Allen.

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