No princípio era o Afeganistão

"Jogos de Poder" é mais um filme americano que não pode ser desligado do momento político, mesmo que, em substância narrativa, se reporte a acontecimentos dos anos 80. Mesmo que ou sobretudo porque? Sobretudo porque: o "raccord" não explicitado entre esses acontecimentos de 80 e a situação actual, não explicitado porque instauraria praticamente uma relação de causa e consequência que o filme se abstém de afirmar, funciona como principal "assombração" política de "Jogos de Poder", abrindo a porta para onde Nichols quer chegar. E toda a gente percebe que sítio é esse: tanto quanto podemos ler e saber, responsáveis da Administração Reagan já se esforçaram por contrariar as ligações que o filme permite - quer - que o espectador faça.

E não são, na verdade, novidade nenhuma. "Jogos de Poder" conta a história do congressista Charlie Wilson, um Democrata do Texas que, não obstante trabalhar com uma administração Republicana, foi o principal responsável pelo gradual aumento do apoio clandestino concedido pelos EUA (via organismos como a CIA) aos "mujahedeens" que, no Afeganistão, combateram a invasão soviética.

Numa coisa o filme é muito claro, eventualmente indiciando algum paralelismo com situações contemporâneas - a inexistência de planos sólidos para lidar com o tempo a seguir à vitória militar e estratégica. Ou mesmo, um total desinteresse: já no fim, Wilson tenta conseguir dinheiro para construir uma escola no Afeganistão e respondem-lhe algo como "os russos já se foram embora, que interesse tem uma escola no Afeganistão?". A ser verdade o que nos dizem - que Osama Bin Laden foi um dos "mujahedeen" pagos pelos EUA - as implicações de "Jogos de Poder" são evidentes e justificam o incómodo manifestado pelos antigos responsáveis reaganianos.

Então mas o crítico de cinema só fala de política? Bom, haja paciência, mas o filme é todo feito de política. Ou tudo o que nele é interessante. Não haverá grande erro de previsão em dizer que, no futuro, "Jogos de Poder" será lembrado essencialmente enquanto parte do reavivar, não importa quão fugaz, da chamada "tradição liberal" de 60 e 70 (Mike Nichols, de resto, é um realizador de "60 e 70"), principal contributo dos anos Bush para o cinema americano (e estas coisas estiveram sempre ligadas).

Independentemente das ideias, que são o que são (e sejam o que forem, são o mais significativo), o interesse de "Jogos de Poder" está na descrição dos processos políticos, burocráticos e operacionais, que fazem as coisas acontecer, e que Nichols narra sempre em tom desdramatizado, quase em registo de comédia - a visita de Wilson ao Presidente Zia do Paquistão ou a cena em que convence israelitas e egípcios a trabalharem em conjunto. Quando dramatiza e tenta furar o cinismo reinante sai-se pior - a "epifania" de Wilson no campo de refugiados afegãos soa tão falsa como os próprios refugiados ("multiplicados" pelo CGI, transformados em "efeito especial": as multidões na idade do digital nunca mais serão as mesmas).

Resta dizer que nada disto chega a ser muito entusiasmante, mas é bem sustentado pela mão segura de Nichols, desde sempre eficaz "ilustrador de temas", e um muito razoável director de actores (e praticamente todas as cenas funcionam com base na relação entre um par de actores). Tom Hanks, quase a contratipo no seu Wilson beberrão e mulherengo, refresca um pouco, poluindo-a, a enjoativa imagem de "homem comum" que escolheu envergar; e Philip Seymour Hoffman e Julia Roberts fazem o que podem para fingir que as suas personagens são um pouco mais para além de simples bonecos utilitários.

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