A vingadora da noite

Jodie Foster de pistola em punho a matar os bandidos que percorrem Nova Iorque em busca de vingança pelo namorado perfeito que três rufias mataram no Central Park? Jodie Foster a fazer de Charles Bronson de saias e a tomar a justiça nas suas próprias mãos?

A premissa começa por causar estranheza. No entanto, convém olhar para lá da superfície que dá a entender estar aqui um "thriller" de vigilantes e perceber que uma das grandes actrizes americanas da actualidade e o irlandês Neil Jordan construiram um conto de fadas escuro sobre a culpa e a redenção, reflectindo o estado de espírito da América pós-11 de Setembro.

Não é surpresa para quem conhecer a obra de Jordan que o realizador e romancista irlandês tem andado a olhar para realidades transfiguradas através do olhar de personagens que se sentem "fora" do mundo real. "A Estranha em Mim" introduz essa vertente onírica num "thriller" de narrativa mais tradicional sob a forma de uma viagem ao lado escuro de nós próprios. Erica Bain, uma locutora de rádio que regista no seu programa os sons de uma Nova Iorque cuja personalidade ela sente estar a perder-se por entre o progresso, passeia o cão com o noivo pelo Central Park uma noite quando são atacados por três rufias que o matam a ele e a deixam a ela em coma. Alice atravessou o espelho e o que se segue é o registo das suas aventuras do outro lado de si própria.

"A Estranha em Mim" é o percurso de Erica descobrindo o monstro escondido dentro de si e perguntando-se se valerá a pena deixá-lo à solta: a arma que compra no mercado negro para protecção, confere-lhe o poder de combater o fogo com o fogo, de se substituir à polícia manietada pela lei e castigar os maus que passam pelos buracos da rede legal. Mas é também o percurso do seu questionamento moral à medida que Erica vai ganhando confiança e começa a sentir-se invulnerável - e Foster que é uma das mais extraordinárias actrizes em actividade hoje em dia, não perde oportunidade de explorar o dilema que consome Erica por dentro, sem julgar, apenas trazendo ao de cima a vulnerabilidade e a humanidade de uma mulher que viu o seu mundo desintegrado e procura adaptar-se a uma nova realidade.

Juntos, Foster e Jordan constroem um thriller formalmente elegante que questiona a própria natureza do sub-género ao mesmo tempo que à superfície adere às suas regras. O certo é que, quando Erica Bain atravessa o espelho na direcção oposta no final do filme, não podemos ter a certeza se o monstro que acordou dentro dela foi expulso ou está apenas adormecido - mesmo que uma sequela seja profundamente improvável.

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