Uma leoa chamada Fay

Ainda não há muito tempo existia o verdadeiro cinema "indie" americano - aquele que não era financiado encapotadamente pelos grandes estúdios, que não procurava a rentabilidade nas bilheteiras acima de tudo, que idolatrava os grandes autores europeus mais do que almejava ser uma porta de entrada para o "mainstream". <p/>

Nesse período áureo do cinema independente americano (a transição dos anos 1980 para os anos 1990) Hal Hartley era um dos seus nomes de ponta, e um dos poucos a justificar a definição de "autor", ao declinar um universo muito pessoal ao longo da série de filmes compreendida entre as obras-primas "Homens Simples" (1992), "Amador" (1994) - uma ode a Isabelle Huppert que sublinhava a dívida de Hartley à Nouvelle Vague - e "Henry Fool" (1997).

Depois, Hartley não soube, não foi capaz, não pôde ou não quis entrar na voragem da convencionalização do cinema "indie", assinando apenas duas "longas" mal recebidas ("No Such Thing", 2001, e "The Girl From Monday", de 2004, ambas inéditas em sala entre nós) nos quase dez anos que distam entre "Henry Fool" e "Fay Grim".

As boas notícias é que "Fay Grim" é um regresso de Hartley à boa forma; as más notícias é que "Fay Grim" é um regresso de Hartley à boa forma. Que o mesmo é dizer que o novo filme não é um passo de gigante para lá daquilo a que o realizador nos habituou nos seus melhores trabalhos. Ainda por cima, "Fay Grim" é uma "sequela" assumida de "Henry Fool", retomando as mesmas personagens daquele filme-charneira quase dez anos depois e desviando o foco de atenção de Henry Fool - o estranho misterioso que assenta arraiais na garagem de um homem do lixo - para a sua esposa, Fay. Henry está desaparecido há anos, presumido morto. Simon, o homem do lixo que é irmão de Fay e cujo talento de poeta infame se deve ao mentor Henry, está na prisão. Ned, o filho de Henry e Fay, está à beira de ser expulso do colégio por práticas obscenas. E Fay dá por si no centro de um "complot" internacional de espionagem à volta dos diários que Henry anunciou ao mundo como a obra literária de maior importância da história da humanidade, com os serviços secretos de todo o mundo a esgadanharem-se pelo acesso aos cadernos que só Fay, enquanto viúva, pode fornecer.

Sim, há qualquer coisa de caleidoscópio internacional de espionagem em "Fay Grim", mas completamente esventrado por Hartley, que usa os lugares-comuns do filme de espionagem como ponto de partida para declinar mais uma vez os seus temas favoritos da perturbação, do desejo e da dúvida. É um filme literalmente esquinado (todos os planos e enquadramentos estão ligeiramente inclinados, sublinhando a noção de um mundo que saiu dos seus rodízios), que fragmenta e destrói até à irrisão a sua intriga de espionagem até ao ponto em que já não nos interessa minimamente quem anda a trair quem, apenas saber se Fay e Henry se irão verdadeiramente reencontrar. Porque, no essencial, "Fay Grim" é a história de uma mulher (assombrosa Parker Posey) que descobre a leoa que há em si, capaz de tudo para recuperar o seu amor e proteger aqueles que ama, trabalhada com o peculiar desprezo de Hartley pela convenção do género. Pelo meio, reencontramos o humor seco e absurdista que sempre marcou o seu cinema. A única "novidade" em relação a obras anteriores é o recurso ao digital de alta definição, manejado com extraordinária eficácia pela directora de fotografia Sarah Cawley, mas mesmo o seu trabalho vem na linha do que Michael Spiller fez anteriormente com o realizador.

Ou seja, "Fay Grim" é um reencontro com um realizador que se mantém igual a si próprio, o que é, ao mesmo tempo, um conforto (porque há pouca gente a filmar como Hartley) e um marcar passo. Mas já não é nada mau que assim seja.

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