As ruínas do "film noir"

Quando um filme chega tardiamente aos ecrãs, não em apenas em Portugal, mas também nos mercados internacionais, incluindo o americano, tal revela umaestranha dificuldade para digerir o produto proposto. Com efeito, "Verdade Inquietante", primeiralonga do argumentista Wayne Beach, produzida em 2005, passa por uma estrutura complexa de "flash-backs", baralhando o espectador quanto à verosimilhança ficcional: um carismático procurador (Ray Liotta em precisa composição que não excluimemórias dos seus papéis como vilão), com ambições a desenvolver carreira política, vê-se confrontado com a hipótese de um escândalo de enormes dimensões, quando o seu braço direito, uma assistente negra,declara (com a caução visual do respectivo "flash-back" comprovativo) ter sido violada e ter morto o seu agressor em legítima defesa. Até aqui, tudo bem, com a mais-valia da integração no tecido fílmico de questões de identidade sexual e rácica, como convém a uma narrativa "moderna" que se preze. Tudo se complica, no momento em que novo "flash-back",correspondente ao testemunho de um amigo do morto, vem contradizer o anterior, questionando a veracidade das provas apresentadas, mas também averosimilhança das imagens assumidas como fio condutor da acção. E, desde aí, entramos numlabirinto infinito de pistas sobrepostas, de enganos de identidade, na procura incessante do chefe de um "gang", que ninguém conhece. Na explanação dos motivos, aparece a especulação imobiliária e cria-se o suspense de um "golpe", a realizar de madrugada, que envolve o espectador numa inesperada rede do não-dito.O resultado é contraditório: se esperamos pela revelação da novidade, estamos aprisionados pelos mecanismos de ocultação, pelas falsas pistas, pela confusão narrativa que se instala. Já ninguém sabe quem é quem e quem comanda o quê. Antes da explosão final do velho complexo habitacional, aparentemente para favorecer o "bandido-mistério" e os seusprojectos especulativos, já se revelou que o segundo informador é agente do FBI e que a "assassina" negra,ajudante do procurador, não é negra, mas faz-se passar por negra, numa inversão do "cliché", que maisnão faz do sublinhá-lo.

O prazer deste "thriller" de argumentista acaba, pois, por passar pelo seu lado mais desconchavado,pelo excesso de histórias e de alterações radicais das expectativas, pelo facto de não se perceber nada e de isso também não importar grandemente. Desde o início, colocado sobre a égide de um "pastiche" de "film noir", com adequada narrativa, "a posteriori", em voz "off", e estereotipada mulher fatal, tal faz deste filme desconcertante um curioso exercício de estilo, esvaziado de função pelainsistência na evidência das formas. Mais do que interessados em deslindar o "puzzle" da acção, damos por nós a valorizar os seus defeitos, o gozo propiciado pelos buracos de argumento, pelainexplicável sequência de peripécias. Nas ruínas do"film noir" tradicional e a uma razoável distância dasua eficácia narrativa, comprazemo-nos na imperfeição, no risco de trabalhar numa zona quaseabstracta do absurdo do cinema sem objectivos visíveis, nem estratégias de comunicação, um não-filme de acção, recheado de acções gratuitas e de "gadgets" vazios de conteúdo. O prazer pelo prazer de jogar com os restos de um género que já não faz sentido.

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