Europa ano zero

É o acontecimento que muitos aguardavam há largos anos com prazer desde que "Romance Perigoso" o reconciliou com o "mainstream" Hollywoodiano: o momento em que a bulimia estilística de Soderbergh, o seu virtuosismo quase ofensivo se concentram num único filme que se estica para lá do que pode fazer, que merece a designação de "falhado" (e como os detractores que sempre acharam Soderbergh mais forma que conteúdo, vão rejubilar com este filme!). Ainda por cima com um dos "filmes de estúdio" com que vai intervalando os seus filmes "independentes", mais ousados formalmente: "O Bom Alemão" é produzido pela Warner, tem o cúmplice George Clooney, Cate Blanchett, Tobey Maguire, Beau Bridges. Não registou nas bilheteiras americanas, falhou por completo as nomeações para os Óscares 2007.

E, contudo, tomara nós que todos os filmes falhados fossem do calibre de "O Bom Alemão", adaptação deum romance de Joseph Kanon que usa o formato do filme negro e o ambiente da Berlim do pós-II Guerrapara sondar os temas da culpabilidade e da inocência, do passado e da memória, atirando umcorrespondente de guerra para o meio de um turbilhão de acontecimentos onde nada é o que parece e onde os bons não são necessariamente bons. É difícil(impossível) olhar para "O Bom Alemão" e não ver aqui uma parábola da intervenção americana no Iraque - rodada a preto e branco e construída como um cruzamento de "Casablanca" e "Chinatown" escrito pelo cinismo de Billy Wilder, e filmado como um filme de estúdio dos anos 50.

Há uma mulher fatal, Lena Brandt (Blanchett a querer evocar Marlene), berlinense que caiu na perdiçãoquando a guerra lhe levou o marido, matemático pacato promovido a oficial das temidas SS. Jake Geismar (Clooney) conheceu-a antes da guerra, quando era correspondente em Berlim, e regressa neste Julho de 1945 para cobrir a conferência de paz que reúne Estaline, Churchill e Roosevelt, mas na verdade parabuscar a mulher que amou. Mas a guerra mudou tudo, e todas as personagens têm de viver com o peso da escolha que fizeram: só o repórter, herói nominal cujo suposto faro investigativo consegue a proezade compreender erradamente tudo o que se está a passar, continua magnificamente alheado dasrepercussões da situação em que se deixou cair.

Numa Berlim em curso de partição entre os aliados, americanos e russos não acreditam que o marido de Lena esteja morto e disputam-se entre si para o alcançarem primeiro, se ele estiver vivo; não fosse Tobey Maguire, o soldadinho americano fura-vidas,especulador do mercado negro, que serve de chulo a Lena e motorista a Jake, meter-se no meio e o caso ficaria no segredo dos deuses. Jake é um cínico romântico que ainda acredita num mundo melhor, mas todos os que o rodeiam não têm ilusões, todos têm um segredo a esconder, todos têm um ângulo para manipular os outros. A começar por Lena.

"O Bom Alemão" é uma visão de conjunto do ponto zero do mundo contemporâneo, sugerindo com inteligência que a conferência de Potsdam - espécie de Tratado deTordesilhas do mundo ocidental pós-guerra - foi a manifestação prática de um espírito de sobrevivência calculista que varreu o mundo durante a guerra, arevelação mascarada da política como a arte de sobreviver com elegância às convulsões do mundo.Alguns transportarão sempre a culpa de uma inocência, de uma ingenuidade que foram obrigados aperder, mas outros continuarão sempre a ser idealistas capazes de tudo em nome de uma causa, pormais errada que isso seja.

Enquanto filme de tese, é apaixonante, funcionando dentro da inteligência estética subversiva queSoderbergh adora praticar: tudo evoca a produção corrente hollywoodiana dos anos 40 e 50, desde a rodagem em estúdio aos enquadramentos, "raccords" etransições, só que com alusões sexuais e uma crueza de diálogos que não seria possível naquela década. Subversivo, sim, mas não pós-moderno - Soderbergh já fez pós-moderno, o que lhe interessa agora é ser apenas moderno, que o mesmo é dizer, regressar ao clássico com sinceridade e sem afectação.

Paradoxalmente, contudo, é esse regresso ao passado que mina "O Bom Alemão" e o transforma de objecto de tese em filme falhado: Soderbergh deslumbrou-se de tal modo com o estilo que emula que tudo o resto, dos actores à construção da narrativa, parece estaraqui para justificar a forma, convertendo o filme num objecto frio, morto, estéril, demonstração devirtuosismo estético que negligencia a emoção subjacente à narrativa, restringe a gama dos actores para se limitarem a marionetas estilizadas,prisioneiros de arquétipos tipificados. Tudo tanto mais irritante quanto não se pode acusar o elencoreunido de ser fraquinho e quanto o filme é mais um "tour de force" de Soderbergh, outra vez realizador, director de fotografia e montador.

E, contudo... Quantos realizadores se conseguem manter actuantes, curiosos, dispostos a experimentarao fim de duas dezenas de filmes? É verdade, sim, é um filme falhado - e, contudo, como é magnífico queSoderbergh tenha corrido o risco e o tenha feito.

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