Pais e filhos

Três horas sobre os primórdios da CIA - do seu embrião no início da II Guerra ao fiasco da Baía dos Porcos e à sua entronização como agência independente no seio das entidades americanas - vistas pelo prisma de uma das suas eminências pardas, um homem tão secreto que se manteve um segredo para a própria família. (Mas a família é a família em que nascemos ou aquela que escolhemos?)

Há algo de grandiosamente ambicioso em "O Bom Pastor", há uma ressonância operática, algo Coppoliana, nesta segunda realização de Robert de Niro - não é casual, Coppola esteve indigitado para dirigir o guião do argumentista Eric Roth.

Foi uma longa viagem para pôr o projecto de pé, para se debater com a indiferença de uma crítica displicente para com o filme, com o desinteresse do público, com a injustíssima ausência dos Óscares. Sejamos realistas: não é um grande filme, e não é só Coppola que nos vem à cabeça - há algo da desmesura de Oliver Stone nos seus tempos áureos, no desafio louco de entrecruzar o público e o privado, a Grande História e as pequenas histórias.

Mas o que é tão fascinante é esse desequilíbrio, essa vontade de ir (mais) longe e de iluminar com outra luz acontecimentos conhecidos, e o modo como tudo se resume a uma história de pais e filhos. Como uma saga mafiosa. Só que vista pelo lado dos silêncios, de tudo o que fica por dizer mas se infere nas entrelinhas.

"O Bom Pastor" - aquele que se sacrifica pelo rebanho - que Eric Roth e De Niro entregaram a Matt Damon, numa composição estática, toda em insondável movimento interno, é uma personagem ficcional, mesmo que inspirada por gente real. Nenhum Edward Wilson, estudante de poesia de Yale erguido a mestre de xadrez da contra-espionagem, existiu. Nem nenhuma das outras personagens, embora todas elas tenham equivalentes reais, mas isso é mera tela de fundo para desenhar o corpo central da filiação que De Niro sublinha, tornando "O Bom Pastor" num espelho da sua estreia na realização, "Um Bairro em Nova Iorque" (1993).

Onde ali se contava a história de um adolescente dividido entre dois pais - como se diria hoje, o "pai biológico" e o "pai adoptivo" - aqui conta-se a história de um homem que cresceu sem pai, marcado pelo suicídio a que assistiu, e que, depois de descobrir um pai "adoptivo" que lhe ensina as "artes negras" da espionagem, dá por si inexoravelmente distante da sua própria família. "Não confies em ninguém", recomenda o mentor Michael Gambon a Wilson/Damon - e, como o conselho de um pai que se adora, ele segue-o à risca.

É uma premissa arriscada para sustentar três horas, ainda por cima construídas em dois tempos paralelos que se vão aproximando até se unirem num único. Não é um filme de espionagem nem é um drama familiar, cai algures no meio. Mas tem uma ambição visual, uma inteligência narrativa que não se explica apenas pelo argumento, evitando a maior parte das armadilhas colocadas por essa ambição.

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