Cuidado. Aqui há adultos

É com baloiços ao fundo que o subúrbio (americano) se oferece... íamos dizer "em todo o esplendor", se quisermos ver assim as peles muito brancas, sardentas, os cabelos louros e os olhos claros, "white anglo saxon protestant". Arredores de Boston, mulheres enfastiadas, à espera ou a adiar o dia do sexo semanal com o marido, a velarem pelos filhos no parque. Grandes planos de uma, de outra, depois de outra, como eclosões desse fenómeno espectacular que é essa espécie de nivelamento perfeito, assustador (mais parece competição de "normalidade"): o subúrbio.

Uma norma só o é com desvios. É essa a norma. Sim, Sarah (Kate Winslett, nomeada para o Óscar de actriz principal) esquece-se sempre da comida da filha (os olhares das outras não deixam passar que é dona de casa falhada). E esqueceu-se de outras coisas, de tocar o marido, que também deixou de a tocar porque se fecha no escritório agarrado ao fétiche da Net (de onde lhe chegaram umas cuecas, "marketing" erótico nada digital, que ele cheira compulsivamente). Voltando aos baloiços: há também um homem no parque infantil, homem com criança. É um "pai dona de casa", chama-se Brad (Patrick Wilson).

Inevitavelmente, Brad, porque tem a cara que tem e o rosto que tem, começa a alimentar as fantasias eróticas destas donas de casa ("desesperadas", como hoje são conhecidas). Se quisermos entrar pelo mundo de Todd - e Sarah entra pelo mundo de Brad, por fastio, por desespero, para que aconteça algo, se calhar por reconhecer o mesmo desajustamento -, podemos dizer que é casado com Kathy (Jennifer Connelly), e que ela é o homem da casa. Brad não há meio de acabar o curso, não há meio e não há vontade, vestiu as funções domésticas. É um objecto sexual (para as donas de casa) passivo e mais do que isso, emasculado. Só se desvia da função de pai para se maravilhar com jovens que se exibem de "skate". (Suspeita-se da sexualidade de Brad? Suspeita-se com mais propriedade que ele ficou preso aos baloiços. Patrick Wilson, o actor que interpreta a personagem, faz lembrar tanto o Paul Newman de "Gata em Telhado de Zinco Quente"; é um objecto de desejo inatingível, mesmo quando possuído, porque ficou refém dos segredos da sua infância).

E é então a vez de dizer que um pedófilo, recentemente libertado da prisão, chegou a este subúrbio. E que os cidadãos se organizam, exército de vigilantes, para proteger as crianças. Mesmo que nesta fase do texto o leitor comece a ouvir os tambores triunfantes de um efeito de "suspense", atenção: é fácil perceber, chegados aqui, que quem precisa mesmo de protecção são os adultos deste filme de Todd Field, "Little Children" (título original de "Pecados Íntimos" - mais uma prova de que as traduções portuguesas fazem figura de elefantes em lojas de louça).

No centro do vendaval

"Donas de Casa Desesperadas"? Em poucas palavras, e por causa de uma série de televisão, o subúrbio passou a caber dentro de uma bolha artificiosa. Não é por aí que "Pecados Íntimos" alinha. Nem pelo tom ""exploitation movie" de luxo" de "Beleza Americana" (Sam Mendes, 1999). Esse filme, e depois a série televisiva, tornaram o subúrbio artefacto pop, coisa assumidamente plastificada e susceptível de intervenções artificiosas.

Atenção: Todd Solondz ("Welcome to the Dollhouse", de 1995, "Felicidade", 1998), Todd Haynes ("Seguro", 1995), já por lá andavam há muito tempo, pelo menos há uma década - cada um à sua maneira, colocando-se nas margens ou olhando a partir delas: resgatando as coisas, com vergastadas de ironia, à auto-comiseração (Solondz), fazendo operações de sabotagem "queer" (Haynes).

Todd Field não entra por território novo, mas olha do centro. E coloca-nos no centro. Como se ficássemos obrigados a presenciar o que acontece no interior de um fenómeno em desenvolvimento. É por isso que os filmes de Field (já estivemos "lá" antes, com "In the Bedroom", em 2001) se vêm com um sentimento misto, de aventura espantada e de temor. É por isso que o espectador é permanentemente sacudido por um vai e vem de gelo e fogo: tanto se observa como um cientista como se é agitado dentro da experiência. O que é que acontece aqui, e que desencadeia vibrações quase tácteis? O humano. (Às vezes isto é tão só uma questão de pele, branca, corpos sem pêlo, olhos claros...). Talvez seja justo, já agora, fazer o americano Tom Perrotta, o autor do livro que o filme adapta (acabou de ser editado entre nós) e colaborador do realizador no argumento, partilhar responsabilidades no que toca a esses sobressaltos - até porque esse trabalho acaba valer uma nomeação para o prémio da Academia que vai ser atribuído ao melhor argumento adaptado. Quem viu "Election", de Alexander Payne (1999), adaptação de outro livro de Perrotta, sentiu provavelmente sustos.

A meio de "Pecados Íntimos", a mãe do pedófilo diz ao filho: "Um milagre; somos todos um milagre". Por que falamos do pedófilo, figura que nos últimos tempos tem despertado a curiosidade cinematográfica, convém dizer que não presenciamos aqui alguma operação simplista de "humanização". No filme de Todd Field, esse homem, Ronnie de seu nome (Jackie Earle Haley, nomeado para o Óscar de actor secundário), é, simplesmente e nada simplisticamente, uma medida do humano. É aquele, aliás, com mais consciência das fracturas deste vendaval. Curiosa inversão, fazer dele a medida dos milagres que somos nós: donas de casa guilhotinadas pela rotina familiar, em existencial depressão pós-parto, vigilantes paranóicos com a segurança do bairro (é só substituir o subúrbio pela América inteira, e aparecem os contornos da alegoria política), pedófilos a nadar num mar de crianças, amantes perdidos e sem coragem no adultério que simularam...

O ruído dos baloiços permanece na calada da noite. Aqui houve crianças.

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