Kate Winslet: A actriz sem medo

Não é um concurso, mas podia ser. A pergunta seria "diga-nos o nome de um filme interpretado por Kate Winslet depois de "Titanic"", apostamos que a maior parte das pessoas não se lembraria de um - nenhum deles (e já passaram a dúzia...) chegou sequer perto de ser um "blockbuster" ao nível do romance épico de James Cameron. Não foi acaso, foi mesmo de propósito: a actriz percebeu muito bem que tudo o que viesse a seguir a um dos maiores sucessos da história do cinema (e, ainda por cima, um filme que todos apelidavam de naufrágio antes sequer de ser terminado...) iria ser escrutinado ao microscópio. Portanto, em vez de escolher filmes pelo estatuto, pelo salário ou pela popularidade, escolheu-os pelo único critério que pode (deve!) interessar a um actor: pelo desafio. Citação: "Depois de cada filme, pergunto-me sempre o que posso fazer de mais diferente - o que me pode desafiar, o que me pode inspirar, o que me pode fazer gostar do meu trabalho mais do que já gosto".

Portanto, passaram dez anos desde "Titanic" (não deve faltar muito para o DVD comemorativo) e nunca Kate Winslet voltou a fazer um filme tão popular como aquele (peça recente na revista "Time" dizia que a bilheteira americana combinada dos seus 13 filmes pós- "Titanic" não chegava a metade do lucro do filme de Cameron). Mas acaba de receber, por "Pecados Íntimos" de Todd Field, a sua quinta nomeação para um Óscar, no papel de uma dona de casa (verdadeiramente) desesperada que trocou a academia pela maternidade e se arrepende amargamente. É recorde, nenhuma outra actriz recebeu tantas nomeações (e todas elas por interpretações objectivamente excelentes) tão jovem (Winslet fez 31 anos em Outubro). Mas bate certo - contam-se pelos dedos as actrizes que definiram tão cedo o rumo que quiseram dar à sua carreira.

Teria sido fácil multiplicar o sucesso de "Titanic" - e contudo foi preciso esperar dez anos para a ver num filme abertamente comercial (a comédia romântica "O Amor Não Tira Férias", de Nancy Meyers), ainda por cima estreado (nos EUA) ao mesmo tempo de "Pecados Íntimos" e da animação "Por Água Abaixo" (onde fazia a voz da heroína). Três filmes mais diferentes no espaço de três meses não é imaginável, sobretudo depois de um percurso que pareceu quase de "rejeição" de Hollywood, arriscando filmes dificilmente explicáveis aos decisores formatados da meca do cinema. Que outra actriz teria seguido "Titanic" com o papel de uma turista australiana convertida a uma seita oriental no psicadélico "Fumo Sagrado" (1999) de Jane Campion, e passado de recatada viúva vitoriana na história de J. M. Barrie segundo Marc Forster "À Procura da Terra do Nunca" (2004) a prostituta ninfomaníaca no musical proletário de John Turturro "Romance e Cigarros" (2005)?

Ambiciosa, não competitiva

Explicação redutora: Kate Winslet é inglesa, e todos sabemos como os actores ingleses têm uma tarimba e uma amplitude de registos invejável (será da água da torneira?), e como os americanos parecem ter uma veneração e um respeito enorme por eles. Mas é demasiado simplista pegar assim nas coisas: a própria Winslet confessa-se ambiciosa, "mas não competitiva" (o que, admita-se, até é bastante inglês). Igualmente redutor é explicar tudo isto pela herança familiar - a actriz é filha e neta de actores que começou ainda criança a ter lições de representação e aos 11 anos já fazia anúncios de televisão.

Explicação mais plausível (e significativamente menos redutora): se a carreira de um actor se define não apenas pelos filmes que escolhe fazer mas pelos filmes que recusa fazer, então Winslet deve ter parecido ainda mais casmurra em evitar as portas que "Titanic" (segunda nomeação para o Óscar, como melhor actriz, aos 22 anos) lhe abriu. Recusou "A Paixão de Shakespeare" (Gwyneth Paltrow agradece o Óscar), "Ana e o Rei" (Jodie Foster nem por isso) e "O Fiel Jardineiro" (Rachel Weisz também agradece o Óscar a Winslet ter preferido "À Procura da Terra do Nunca") - mas é um exercício curioso tentar perceber o que cada um teria podido ser com a sua presença. Preferiu fazer de Iris Murdoch jovem em "Iris" (2001), de Richard Eyre, justaposta à Iris Murdoch envelhecida e moribunda de Judi Dench (segunda nomeação para melhor actriz secundária), ou pintar o cabelo de laranja para ser a Clementine que Jim Carrey quer apagar da sua memória no maravilhoso "O Despertar da Mente" (2004), de Michel Gondry (segunda nomeação para melhor actriz). Preferiu, em suma, ser uma actriz (é normal, é inglesa - aqui sim, pode-se dizer).

A verdade é que esta disposição "ousada" antecede "Titanic" por alguns anos, vem mesmo desde o seu primeiro papel principal no cinema - tinha ela 17 anos quando Peter Jackson (muito antes do "Senhor dos Anéis"...) a escolheu para o filme que dele fez um cineasta "sério", "Heavenly Creatures" (1994), adaptação de um "fait-divers" verídico da Nova Zelândia dos anos 1950. "Titanic" surgiu como uma fuga ao "typecasting" de todas as jovens actrizes inglesas em filmes de época - a seguir a "Heavenly Creatures", Winslet filmou em rápida sucessão "Sensibilidade e Bom Senso" (1995), de Ang Lee, segundo Jane Austen (primeira nomeação para o Óscar, como melhor actriz secundária, ainda ela não tinha 18 anos), "Jude" (1996), de Michael Winterbottom, segundo Thomas Hardy, e "Hamlet" (1996), de Kenneth Branagh, segundo Shakespeare.

Depois destas heroínas "clássicas" que ameaçaram estereotipá-la como a típica "ingénua de época" da tradição britânica, "Titanic" deve ter parecido uma lufada de ar fresco. E é também por isso que não é de espantar que tenha depois resistido a endossar o estereótipo da heroína romântica que "Titanic" ameaçava: tudo nas suas escolhas (mesmo no filme do barco...) tem fugido em direcção a mulheres que fazem coexistir uma certa ideia, mesmo que quixotesca, de romantismo, um pragmatismo muito moderno, um abandono ao momento, um salto de cabeça sem pensar muito no que vai acontecer a seguir.

Contradições? Evidentemente que sim. A actriz prefere defini-las de outra maneira: humanidade. Isso mesmo pode-se sentir na dona de casa desesperada de "Pecados Íntimos", esposa frustrada e mãe contrariada, que se sente prisioneira de uma subúrbia limitada e mesquinha e que procura num "affaire" de passagem a força que lhe permita fugir ou até reinventar-se - como todas as personagens do filme de Todd Field, nas coisas que interessam ela continua a olhar para o mundo com os olhos de uma criança grande. Não é uma personagem aparentemente Winsletiana - a tendência é mais para mulheres que sabem o que querem - mas não é difícil pensar que foi por isso que a actriz, especializada em atirar-se de cabeça da prancha mais alta da piscina, o aceitou. Até porque dificilmente se poderia encontrar personagem mais distante da "verdadeira" Kate Winslet, que diz não querer ter de representar todos os dias, que é mãe extremosa de duas crianças, que se irrita com os padrões de beleza anoréxicos e que prefere calçar botas a sapatos (calça 44 e isso incomoda-a).

Dificilmente a sua nomeação destronará Helen Mirren do favoritismo para o Óscar de melhor actriz. Mas não nos parece que Kate Winslet - apesar, ou talvez por causa, do seu "cameo" auto-referencial na série televisiva de Ricky Gervais, "Extras", onde diz que há filmes que só se fazem pelos Óscares - esteja muito preocupada com isso.

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