Na cabeça de Michel Gondry

Francês residente em Nova Iorque, já nasceu excêntrico. Cabelos ondulados e sorriso travesso, mais parece um adolescente do que um homem de 43 anos. Faz sentido: chamava-se "I've been 12 forever" ["Terei sempre 12 anos"] o documentário incluído no DVD "The Work of Director..." dedicado ao seu trabalho como videoasta. Spike Jonze, realizador (de videoclips e de longas-metragens), diz que ele tem alma de mago, um Méliès dos tempos actuais. Dave Grohl, dos Foo Fighters, nota: se olharmos bem vemos que ele tem a cabeça grande. "Por isso, imagino que o cérebro é maior do que o normal". Bjork, com quem colaborou (não andaremos longe da verdade se dissermos que é uma alma gémea), compara-o a Woody Allen, pelo lado "neurótico" de alguém sempre "à espera do apocalipse".

Ele é Michel Gondry, autor de videoclips para Bjork, Beck ou The White Stripes. Entrou nas longas-metragens de ficção pela mão de um "autor" de argumentos, Charlie Kaufman ("Queres ser John Malkovich?"). Assim estreou-se com "Human Nature" (2001) e deixou marco indelével na cultura popular com "O Despertar da Mente" (2004). Agora, mostra a excentricidade por conta própria com "A Ciência dos Sonhos", onde Gael Garcia Bernal veste a pele de um alter-ego do realizador: Stephane, jovem estudante inseguro que se apaixona pela vizinha, Charlotte Gainsbourg.

Entramos assim na cabeça de Gondry, alguém que reagrupa, corta e cola o mundo à imagem dos seus fantasmas e constrói fantasias de miniatura. O filme exibe mais revelações íntimas do que qualquer outra coisa que Gondry tenha feito - todo o mundo dos seus filmes vem do mundo dos seus sonhos, na verdade, como quando sonhou que o seu amigo/rival Spike Jonze estava a fazer um filme de uma certa maneira e, ao acordar, decidiu fazer um filme dessa maneira; ou como aquela obsessão de mãos gigantes a crescerem em corpos normais: Gondry tinha recorrentemente esse sonho, e acordava assustado de noite e a esfregar as mãos, com medo de morrer antes de conseguir sequer arranjar uma namorada...

Nascido nos subúrbios de Versalhes, é oriundo de uma família de classe média com "background" artístico - é uma das coisas que partilha com Bjork, essa de filhos de pais hippies ou new age terem sido deixados a si próprios na infância e na adolescência, o que os levou a fazer da solidão e liberdade viveiro para a imaginação. Cresceu querendo ser inventor, coisa que requeria uma aprendizagem científica, o que ele não estava disposto a aturar. E era grande admirador da BD francesa, que, não esqueçamos, é Arte em França. Para além de ser conhecedor dos filmes de animação dos países do Bloco Leste, da República Checa, Eslovénia e Polónia. "Nesses países as pessoas tinham a liberdade de não terem de ser comerciais, por isso eram muito mais ricos em termos artísticos", diz. Todas essas referências são notórias no seu trabalho.

Desenvolveu primeiro o seu amor pela música através da família. O pai tinha uma loja de música em Versalhes. Ofereceu-lhe um equipamento completo de bateria e ao irmão um instrumento de baixo. Quando eram pequenos Michel e o irmão formaram uma banda punk. Nos anos 80, estudou numa escola de arte parisiense, onde era baterista na banda de pop-rock Oui-Oui. O grupo lançou dois álbuns e Gondry realizou os seus videoclips, um dos quais deixou Bjork impressionada. A parceria entre os dois teve início com "Human Behaviour". Foi por essa altura que se tornou desejado por "performers" como Rolling Stones, Massive Attack, Kanye West ou The White Stripes - que num videoclip se viram transformados em Lego.

Fez anúncios para a Gap, Smirnoff, Air France, Nike, Coca Cola, Adidas. Ganhou a reputação de ser o mais "cool" dos realizadores de "clips", coisa que o faz rir hoje, porque, como diz, na realidade nunca foi "cool". "Gosto muito dessa coisa do "cool", principalmente quando passámos a nossa juventude a sermos rejeitados em tudo o que era sítio por não sermos "cool", porque quando não se é "cool" viramo-nos para a criatividade, tirando vantagem da situação. Mas depois acusam-nos de ser "cool"..."

a rejeição.

Embora tivesse ficado desiludido por "Human Nature" não ter tido sucesso, com "O Despertar da Mente" partilhou com Charlie Kaufman o Óscar pelo Argumento Original, e tornou-se celebridade. "Depois disso enviaram-me toneladas de guiões, mas isso absorvia-me demasiado, por isso continuei a trabalhar nas minhas próprias histórias. Obviamente foi assustador porque o Charlie [Kaufman] é muito inteligente, mas foi necessário [a separação] para me poder debruçar sobre mim próprio. Há coisas nas profundezas do meu ser que quero exprimir. Fico entusiasmado com o que se encontra dentro do coração das pessoas, o mundo da magia. Gosto de magia, do que é diferente e do que nos irá colher de surpresa." "A Ciência dos Sonhos" anda à volta dos pesadelos que Gondry teve na infância - o mais conhecido dos quais tem a ver com a tal gigantesca luva branca, que está na base de uma cena do filme. Gondry também menciona, como base autobiográfica, o fracasso do relacionamento com a mãe do seu filho de 14 anos. Dá origem a umas quantas peripécias no filme. "A minha personalidade foi moldada pela rejeição das raparigas e mulheres pelas quais estive profundamente apaixonado na minha vida, e recrio essas situações no filme. Não que queira mostrar que estou infeliz, mas a experiência fez com que me tornasse mais criativo, por isso tirei lições positivas de tudo isso. Neste filme, o relacionamento entre as personagens está perto de uma experiência pela qual passei, mas porque essa rapariga que esteve na minha vida não conta a sua versão da história, tenho de ser moderado. Não quero que ela me odeie ainda mais [risos]. Foi por isso que quis que a Charlotte [Gainsbourg] ficasse com o papel. A Charlotte é muito calorosa, muito humana. Mesmo que rejeite o Stephane [a personagem de Gael García Bernal], sente-se magoada pelos acontecimentos e não é nenhuma cabra. Não gosto de filmes sobre pessoas mesquinhas. A realidade era muito mais negra do que neste filme. Nos filmes americanos independentes vemos imensa mesquinhez. Os realizadores contam como foram magoados e mostram como se vingaram através das personagens dos seus filmes. Não gosto disso." O minúsculo apartamento onde a acção tem lugar é, na verdade, a residência parisiense de Gondry. Em tempos viveu aqui com a ex-namorada e o filho deles, que agora vive em East Village, Nova Iorque, como o pai.

Jim Carrey, em "O Despertar da Mente", foi o mais próximo que Gondry esteve do cinema americano "mainstream". Temos a impressão que é o ponto máximo até onde está disposto a ir. "Cada actor é diferente. E a função do realizador é a de encontrar uma maneira de comunicar, de encontrar o que temos em comum, explorando esse território o melhor possível para que nos sintamos confortáveis. Gostava do Jim quando ele não estava absorto em si próprio. Quando nos vimos pouco antes das filmagens ele perguntou-me como podia preparar o seu papel. Tinha o seu bloco de notas e apontava os seus pensamentos sobre a personagem. Eu disse-lhe que não apontasse os seus pensamentos, mas sim os de outra pessoa. "Telefona aos teus amigos e pergunta como é que se sentem. Por uma vez não penses que o teu trabalho é pensar sobre ti próprio". Sentia-me atrapalhado por lhe pedir que o fizesse. Mas ele disse que fez o que eu sugeri e que isso o ajudou."

Trabalhar com o mexicano Bernal foi uma experiência totalmente diferente. "É claro que foi mais fácil. Mas tive que fazer também com que ele se deixasse do seu temperamento latino com a rapariga, porque agia como o macho dominante. Mas em termos de humor e imaginação, Gael estava onde eu o queria". Gondry planeia alternar entre a realização de filmes entre a França e os Estados Unidos. Está a filmar "Be Kind Rewind", farsa sobre a indústria cinematográfica, com Jack Black. É provável que se reuna com Bernal para "Master of Space and Time", sobre dois cientistas loucos que descobrem uma maneira de controlar a realidade. "Sinto que agora sou capaz de contar as minhas próprias histórias nos filmes. Mesmo que os meus vídeos sejam muito visuais, também ali sempre tentei contar histórias - é que não acho que se tenha que aborrecer as pessoas até à morte com imagens aborrecidas. No que diz respeito aos filmes, sinto que estou a ser aceite pelo que faço mas levou tempo. No início as pessoas pensavam que eu era demasiado "cool" ou que andava a copiar coisas..."

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