O sono comanda a vida

Não é impunemente que se assina uma obra-prima como "O Despertar da Mente" (2004). O segundo filme do francês Michel Gondry, um dos mais inventivos directores de telediscos revelados nos anos 1990 (lembremo-nos: a coreografia obsessiva de "Around the World" dos Daft Punk, o plano-sequência de "Protection" dos Massive Attack...), aplicava a sua fervilhante imaginação lúdica "faça-você-mesmo" a um extraordinário guião de Charlie Kaufman ("Queres Ser John Malkovich?", Spike Jonze, 1999; "Inadaptado", Jonze, 2002) que desintegrava uma simples história de amor numa meditação sobre a memória e a humanidade.

Evidentemente, tudo o que vier depois de "O Despertar da Mente" terá que ser medido contra aquela fasquia - até mesmo o filme anterior, "Human Nature" (2001), também escrito por Kaufman e inédito em sala por cá (e, por isso, só visto por muitos depois), o foi. Esse é o primeiro obstáculo que "A Ciência dos Sonhos" tem de ultrapassar - é o sucessor de um dos grandes filmes da década. E é um sucessor que vê Gondry afastar-se da "sombra tutelar" de Kaufman e deixar Hollywood: trata-se de uma produção franco-italiana ambientada em Paris, escrita pelo próprio Gondry, mas continuando a mergulhar no inconsciente humano como motor da narrativa - como o título sugere, "A Ciência dos Sonhos" é uma fantasia pós-freudiana, com o seu quê de autobiográfico, sobre a tentativa de reconciliar um mundo real e um universo de sonho que parecem estar nos antípodas um do outro.

Stéphane (Gael García Bernal com o charme no máximo) é um ilustrador cataléptico com uma vida onírica particularmente activa, que resolve e amplifica aos limites do absurdo e do grotesco a desorientação que sente: recém-regressado a Paris para viver com a mãe e a trabalhar desconsoloadamente numa empresa de catálogos, descobre-se atraído pela nova vizinha do lado, Stéphanie (Charlotte Gainsbourg), com a qual, depois de uma série de mal-entendidos, enceta um romance improvável. Pontuado pelos sonhos de Stéphane, que vão de máquinas de barbear assassinas à programação da sua estação de TV pessoal, a "Stéphane TV", o filme mergulha a fundo no fascinante universo visual que Gondry desenvolveu nos seus telediscos, misto de imaginário pós-psicadélico e artesanato de efeitos especiais lúdico e fantasista que oscila entre o engenho dos truques à Meliès e a ingenuidade de uma criança a brincar com perspectivas e máquinas, habitado com prazer por um elenco disposto a entrar no jogo.

Só que ser um criativo visual engenhoso não é a mesma coisa que ser um argumentista - e é precisamente a ausência de um argumentista talentoso como Charlie Kaufman que desbarata "A Ciência dos Sonhos". Falta uma estruturação narrativa capaz de dar às ideias de Gondry uma forma dramática coerente, sem a qual tudo se perde numa comédia romântica excêntrica prisioneira de um frágil fio de trama que oscila entre o encantador e o idiota, entre o estapafúrdio e o poético, entre o inspirado e o xoninhas, entre o sensaborão e o subversivo. É provavelmente esse desequilíbrio constante entre a bricolage visual de Gondry e a narrativa desconjuntada que dá ao filme um charme carola muito lá de casa, mas é uma luta inglória da qual "A Ciência dos Sonhos" sai derrotado.

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