O ocaso do herói

O falecido Leslie Halliwell, o venerando crítico e cinéfilo britânico que nos legou o guia de filmes que leva o seu nome, definiria em três palavras "O Guardião": "recruiting poster heroics", ou seja, aventuras heróicas dobradas de filme de recrutamento de jovens facilmente impressionáveis para as forças armadas.

No caso, é a Guarda Costeira americana que serve de pano de fundo a este melodrama de acção dedicado aos nadadores-salvadores que arriscam as vidas para salvar as vítimas de acidentes no mar - e tal como o êxito de "Top Gun" (Tony Scott, 1986) fez milagres pela admissão de candidatos a pilotos aviadores na Força Aérea americana, não é descabido que "O Guardião" venha a fazer o mesmo pela Guarda Costeira, ao mesmo tempo que reforça a confiança do povo americano na excelência das suas forças militares.

No entanto, a verdade é que é injusto reduzir "O Guardião" apenas ao papel (que, de qualquer maneira, cumpre bem) de elogio heróico dos nadadores-salvadores militares - porque o filme de Andrew Davis (que não víamos tão inspirado desde "O Fugitivo", e já lá vão 13 anos) trabalha subterraneamente alguns dos temas mais recorrentes do cinema americano clássico. A história desenha-se como uma formulaica "passagem de testemunho" entre um veterano e um novato, com o inevitável subtexto da relação paternal - um nadador-salvador veterano, lenda viva do serviço, é recolocado como instrutor após ver o seu helicóptero perder-se em parte por sua culpa, e na turma que lhe cabe em sorte está um antigo campeão de natação que ele sente não ter o estofo para arriscar a vida pelos outros. Pelo meio das figuras obrigatórias deste tipo de filmes de caserna - e a matriz das cenas de instrução é "Oficial e Cavalheiro" (Taylor Hackford, 1981) - Davis faz passar a construção de uma relação afectiva entre o sargento e o recruta, um reconhecimento quase subliminar de vivências e traumas comuns. Mais ainda: se, em "Oficial e Cavalheiro" tudo estava focado no novato e na sua sobrevivência à duríssima instrução, torna-se claro que, para Davis, a personagem do aspirante a salvador Jake Fischer (Ashton Kutcher) apenas existe como "figura obrigatória" contraponto do sargento Ben Randall (Kevin Costner) e do dilema existencial que o trabalha desde o primeiro momento do filme até ao último: como é que se enfrenta o envelhecimento numa profissão em que se arrisca a vida todos os dias e se corre o risco de não regressar a cada missão, como é que se envelhece vendo a morte de frente todos os dias?

Para isso contribui em grande parte uma interpretação notável de Kevin Costner, que espelha o próprio percurso do actor em Hollywood e também a resposta que ele encontrou para regressar depois da "queda em desgraça" resultante de uma série de más opções de carreira - deixando sempre o tormento e a dúvida à flor da pele, trazendo ao de cima as fraquezas por baixo da força, com uma cordialidade rude mas humana que recorda John Wayne. É um daqueles papéis que obriga a repensar a ideia feita de um actor e, só por si, razão suficiente para ver "O Guardião", embora haja mais motivos de interesse - é pouco normal que um "blockbuster" hollywoodiano não só aceite ter uma personagem central mais velha como opte por explorar os dilemas que a sua idade levanta ou surja contaminado desta maneira pela presença da morte.

Mas, depois, é pena que Ashton Kutcher não responda à entrega de Costner com mais do que uma correcção intimidada; é pena que se veja tão pouco das personagens femininas (mas, felizmente, Sela Ward e Melissa Sagemiller conseguem fazer milagres com o pouco que têm); é pena que Davis não resista a descambar para um final meloso, depois da inteligência narrativa e das excelentes cenas de acção que ficaram para trás. Mas a verdade é que "O Guardião" é bem mais interessante do que a "americanada" patrioteira que promete ser - e um dos melhores "blockbusters" estreados este ano, mesmo que de "blockbuster" tenha mais fachada do que alma.

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