Nas ruínas do "film noir"

Dos cineastas da sua geração, a dos "movie brats", Brian De Palma é dos que mais ganha com uma revisão conjunta da obra, de tal modo o aparato formal, que aplica à memória do cinema clássico, se revela construtivo e inovador.

Depois de um período mais experimental, trabalha, a nível da média e grande produção, sobre os resíduos dos géneros - o terror com "Carrie" (1976), o "thriller" hitchcockiano com "Vestida para Matar" (1980), ou o filme de "gangsters" com "Scarface" (1983) - e constrói um olhar moderno, que se distancia dos originais, embora sempre com a marca referencial de um "pastiche".

E aqui surge uma das questões essenciais do seu universo: há que distinguir entre este investimento transformador no passado fílmico e uma vertente ilustrativa, que com ele coexiste. Assim, quando revisita "A Janela Indiscreta", em "Body Double" (1984), ou quando incorpora uma homenagem formal a Eisenstein no uso do espaço da Grand Central Station, em "Os Intocáveis" (1987), o cineasta limita-se a seguir códigos, tornando-os reconhecíveis pelo espectadores e instituindo-os numa facilidade representativa, como se o "pastiche" representasse um fim em si, independente da sua função cinematográfica.

Deve ler-se "A Dália Negra" neste contexto: adapta um romance de James Ellroy, cuja produção literária funciona enquanto objecto "revisionista" em relação aos clássicos do género "noir", de Hammett a Chandler, passando por James M. Cain; integra uma releitura transversa de uma série de filmes (do "film noir", como transgénero), nomeadamente "A Dália Azul", veículo para Alan Ladd e Veronica Lake; adopta, no modo como cita os seus referentes, um tom respeitoso e moderado.

Isto leva-nos, de novo, à necessidade de falar da carreira complexa de De Palma: depois de ter assinado impecáveis exercícios de estilo (mas não mais do que isso), como "Missão: Impossível" (1996), ou "Mission to Mars" (2000), regressara à sua vertente mais radical, criando com "Femme Fatale" (2002) uma fascinante rede de sentidos e uma visualidade que arriscava a desconstrução e a recomposição da acção, bem como dos sinais atmosféricos do "film noir". Era um objecto único, irrepetível, revolucionário.

"A Dália Negra" não inventa nada e não quer inventar nada; limita-se a seguir o livro com profissionalismo e correcção, o que não é pouco: previsível e controlado (o que não é apanágio de De Palma), constrói uma narrativa escorreita com um par de heróis a preceito (Josh Hartnett possui uma interessante vulnerabilidade), uma mulher fatal bem decalcada de tantas outras (Hillary Swank consciente de um certo estereótipo) e uma bem carpinteirada história, com pinceladas freudianas. (Decepcionante é o papel distribuído a Scarlett Johansson, manietada por uma figura de pouca espessura, que acaba por funcionar como elo secundário do mal disfarçado "ménage à trois".) De resto, está lá tudo, como numa antologia de melhores momentos, pensada ao milímetro para produzir um efeito. Claro que reconhecemos as marcas estilísticas de "autor" - picados verticais, travellings bem executados, panorâmicas certeiras - mas sempre ao serviço da eficácia "comercial" de um produto com leitor à vista. É pouco? Depois de "Femme Fatale", esperávamos outra tensão, soluções mais arrojadas.

Os fãs de Ellroy invocarão "L.A. Confidencial", insistindo num maior grau de fidelidade. Os admiradores de De Palma lamentarão a excessiva contenção de meios. Uma coisa não pode negar-se à "Dália Negra", o seu rigor e a inteligência com que explana as pistas traçadas. Não ficará como ponto alto numa obra rica em coerências e variações; nunca se lhe pode negar, porém, força e capacidade para recriar o mecanismo citacional: um brilhante De Palma "au ralenti".

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