Ser filho

Noah Baumbach é um nome que não dirá muito ao comum dos espectadores. Não é um estreante, esta é já a sua quarta longa-metragem. Mas o projecto mais conhecido em que o seu nome esteve envolvido foi "Um Peixe Fora de Água" / "The Life Aquatic with Steve Zissou", o último filme de Wes Anderson, de que Baumbach escreveu o argumento, a meias com o realizador. Agora, Wes Anderson é um dos produtores de "A Lula e a Baleia".

Estamos simultaneamente muito longe e muito próximos desse filme em "A Lula e a Baleia". Desde logo, porque o cenário e a narrativa apresentam disposições bastante mais realistas do que o que acontecia no universo fantasioso do filme de Anderson - Nova Iorque, Brooklyn mais especificamente, meados dos anos 80. Ao mesmo tempo, o filme de Baumbach parece estar sempre pronto a partir para uma irrealidade (e uma subjectividade) que é sempre contida, até se libertar nos momentos finais, onde voltamos a encontrar uma imagética marítima, tal como predominava no filme de Anderson (e de resto, o último plano do filme tem algo a ver com uma das cenas-clou de "Um Peixe Fora de Água", o encontro com o tubarão luminoso).

coming of age.

Estamos em Nova Iorque e em meados dos anos 80, dizíamos, e num ambiente social caracterizável como pertencendo à burguesia citadina e intelectual, não muito longe daquela que Woody Allen retratou dezenas de vezes. "A Lula e a Baleia" é a história de um divórcio. Ele, um magnífico Jeff Daniels (em boa hora regressado a um papel de protagonista), é professor universitário de literatura, e mantém uma carreira como escritor que se encontra actualmente na mó de baixo, depois de um começo auspicioso.

Ela (Laura Linney), igualmente ligada às letras, está a ver a sua carreira finalmente desabrochar (conseguiu um editor que lhe publique um livro), depois de anos presumivelmente passados na sombra do marido. E depois há os dois filhos, adolescentes, um pouco perdidos, a tentarem compreender o mundo dos adultos tanto quanto tentam ser já, eles próprios, um pouco adultos. A razão de ser de "A Lula e a Baleia" está menos no relato objectivo da separação e divórcio dos pais do que na maneira como os dois filhos o vêem e são capazes (ou não) de lidar com ele. Daniels e Linney arranjam um sistema de partilha do tempo e da companhia dos filhos, a "custódia conjunta" ("joint custody blows", avisam os amigos dos filhos que já passaram pelo mesmo), que implica que durmam uma noite em casa do pai e outra em casa da mãe. Isto é quase um dispositivo de comédia (e é usado enquanto tal) mas permite, sobretudo, que seja o próprio filme a ter uma espécie de "custódia conjunta" sobre as personagens dos pais, e que os vá descobrindo e revelando a pouco e pouco, à medida que eles (as suas vidas, os seus passados) se vão revelando aos filhos. Estes por sua vez, vão encaixando as revelações, tomando partido por um ou por outro dos progenitores (o mais velho pelo pai, o mais novo pela mãe), e integrando a experiência nos seus processos pessoais de amadurecimento. "A Lula e a Baleia" também é a história de um "coming of age", rugoso e não-linear, que exige (ver outra vez o plano final) uma espécie de aceitação, pacificada, da nostalgia por um passado familiar harmonioso que se calhar, afinal, não passa de uma construção da memória.

comunidade geracional.

Em traços gerais, isto é o que se passa em "A Lula e a Baleia". Mas vale a pena precisar que, como sempre acontece, os detalhes é que o decidem. A capacidade de manter, sem falhas, um tom de comédia triste, embalada por um riso compassivo das fragilidades e vulnerabilidades das personagens (por exemplo, tudo o que tem a ver com a crise de auto-estima da personagem de Daniels, autor de livros a que já ninguém liga nenhuma); a construção das personagens, sempre por toques discretos, e a maneira de conceber as situações, sempre num pudor irrepreensível (percebe-se que a coisa não vai bem entre Daniels e Linney numa conversa cujo som não ouvimos, visto que o filme a mostra do ponto de vista dos filhos); a capacidade de inventar pequenos "gags" (às vezes, "micro-gags"), e de os prolongar no tempo até que se expandam e deixem de ser só "pequenos gags" para adquirirem um significado quase "cósmico" (a história da canção dos Pink Floyd que o miúdo apresenta como um original seu num concurso da escola); a extrema delicadeza com que se filma o desamparo de todos - por exemplo aqueles planos muito breves e de um dramatismo sempre contido em que vemos o miudo mais novo a inventar uma espécie de alcoolismo - e a forma como o filme ou não comenta esse desamparo ou escolhe o comentário menos óbvio.

Parece claro que "A Lula e a Baleia" reforça uma sensação de "comunidade geracional" que se detecta com relativa facilidade no "novo cinema americano" feito por realizadores que estão na casa dos trinta (Baumbach nasceu em 1969). Isto não é necessariamente um "movimento", e ninguém garante que não esfume relativamente depressa; mas vale a pena sublinhar a raridade desta espécie de "coerência colectiva" que nos últimos anos se tem visto nascer no interior do cinema americano, de Wes Anderson a Sofia Coppola, também eles filhos a olhar para os pais ou para o cinema dos pais. Para já, pode-se acrescentar Noah Baumbach.

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