Sozinhos em casa

Eles chegam dentro de malas. Antes disso: vemos a mãe e vemos Akira, o filho, 12 anos. Os dois chegam ao apartamento de Tóquio, carregados com malas. E elas abrem-se. É então que de lá saem Kyoko, 10 anos, Shigeru, 7, Yuki, 5. Ondas de feliz loucura espraiam-se - porque a mãe parece tão criança como os filhos... -, com a máscara da brincadeira a servir (para já) as aparências.

É uma agitação nervosa, só no início tapa os indícios inquietantes que já lá estão. Por exemplo, que ninguém - ordena a mãe como quem propõe as regras de um jogo - pode sair de casa, nem se mostrar aos vizinhos, a não ser Akira, o filho mais velho.

Que a mãe se ausenta frequentemente para não se sabe onde e nenhum dos filhos pergunta - mas é uma espécie de pacto expectante, como os minutos que antecedem a catástrofe.

Que a infantilidade da progenitora será a face de uma desrazão qualquer, de uma vertigem pelo abismo ("Encontrei este homem...", diz às tantas a mãe a Akira. "Outra vez?", responde-lhe o filho...), que se vai revelando como promessa certa de desagregação.

Que tudo está à beira de ruir, que as crianças estão abandonadas ao seu destino. Um dia a mãe não volta.

É um caso verídico, do final dos anos 80, em Tóquio. Os jornais chamaram-lhe o "Caso das 4 Crianças Abandonadas de Nishi-Sugamo": em 1988, quatro crianças foram deixadas pela mãe num apartamento arruinado durante seis meses. Ninguém sabia da sua existência - filhas de pais diferentes, nem sequer estavam registadas.

"Ninguém Sabe", chamou o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda ao seu filme. Que é menos a reconstituição desse "fait divers" - só os dados de partida são os mesmos, assumiu numa entrevista o realizador, que depois construiu a sua própria história - do que uma espécie de abstracção a partir dele. Como se Hirokazu Kore-eda quisesse filmar a agonia de uma geração perdida, fazer o retrato de uma desolação e alienção urbanas - da mesma forma que o são, também da Ásia, os filmes de Tsai Ming-liang, em que as personagens permanecem sempre invisíveis umas em relação às outras (mas há muito a separar os universos e registos do realizador japonês e do cineasta de Taiwan autor de "O Rio").

Disse Hirokazu Kore-eda numa entrevista: "À medida que a família japonesa se atomiza cada vez mais, os avós não vivem com a família nuclear por isso os pais das crianças não podem ser aconselhados pelos seus próprios pais sobre como criar os seus filhos e confiar neles para ajuda. Para além disso, a atomização da vida na cidade faz com que não possamos sequer perguntar aos vizinhos se podem tomar conta das crianças, como acontecia quando eu crescia. Por isso todas as responsabilidades pesam sobre os ombros das mães".

E a tragédia paira no horizonte no filme de Hirokazu Kore-eda. O desastre expande-se lentamente, como deflagração em câmara lenta. Mas brutal. Depois da mãe partir, o dinheiro acaba-se. A comida desaparece (testemunhamos os desesperados malabarismos de Akira para encontrar comida). Os sinais de devastação começam a ser visíveis no corpo das crianças e no espaço do apartamento. Os laços revelam-se frágeis - o périplo de Akira para arranjar dinheiro leva-o a percorrer os vários pais das crianças, num doloroso processo de revelação para o espectador de uma espécie de trauma de origem.

As malas que os tinham escondido no início, já se suspeitava, pareciam pequenos caixões. Este apartamento em ruína começa a fazer as vezes de túmulo. A questão começa a ser: quanto tempo é que elas vão aguentar?

Mas Hirokazu Kore-eda (cineasta nascido em 1962, que se deu a conhecer nos festivais europeus com filmes como "Maborosi", de 1995, "After Life", de 1998 ou "Distance", de 2001) não estimula o jogo com o "suspense". Que a morte anda ali, e que impregna tudo, isso é certo. Mas o realizador procura menos filmar a vitimização (ou até diabolizar a figura materna) do que fixar a resistência, aquilo que se ganha com a perda da inocência. Nesse sentido, "Ninguém Sabe" é um filme sobre a iniciação ao crescimento de um grupo de heróis: as crianças, e a tenacidade indestrutível a que sobretudo a personagem de Akira (e o jovem actor Yagira Yuya, prémio de interpretação no Festival de Cannes aos 14 anos) dá corpo, fazendo do desespero a sua resistência.

E é um filme - apesar da ruína, da desagregação - que se entrega às cintilações: a solidão, o abandono são espaço para a descoberta, como nas magníficas sequências em que, no Verão em que já foram abandonadas, os quatro irmãos deixam pela primeira vez o apartamento e partem à descoberta do seu bairro e da sua cidade. No fundo, à conquista da sua visibilidade.

Mas é um filme de uma secura (como antítese do que podia haver de "fácil" no relato melodramático) inabalável, como se fizesse sua a determinação das personagens, o que só é quebrado - e podia ter sido evitado... - numa sequência lá para o final, quando o realizador coloca na banda sonora um delicodoce pop. Hirokazu Kore-eda escolheu um registo e processos que não sendo propriamente documentais, são vizinhos desse gesto de paciente e meticulosa observação de sinais. Três meses antes da rodagem, começou a habituar as crianças, nenhuma das quais alguma vez tinha actuado, à presença da câmara de filmar. Filmou ao longo de 10 meses, por ordem cronológica, ao ritmo das estações, sem lhes dar propriamente um "script". Antes, fazendo-as viver momento a momento, observando-as e observando-as a observar, registando as alterações físicas do seu crescimento - é nesse sentido que também é um documentário: documenta a relação e os jogos com a câmara, num período de tempo alongado, de quatro inexperientes e jovens actores.

E é também por isso que com "Ninguém Sabe" o espectador é levado a habitar uma experiência interior intensa de sensações múltiplas, onde a angústia e as cintilações da euforia dão o retrato completo da experiência de sobrevivência. Quatro estações na vida de quatro crianças; para sempre sozinhas.

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