A sangue-frio

David Cronenberg tem um longo percurso de olhares sobre diferentes tipos de violência, desde o grafismo mais óbvio de filmes como "A Ninhada" ou "A Mosca" até a uma mais complexa interiorização dos conflitos como "Irmãos Inseparáveis", passando pela tangente à ficção científica, em obras como "Dead Zone" ou, mais recentemente, "eXistenz". De qualquer modo, sobretudo depois de "Crash", a sua obra parece querer conciliar uma dimensão de aparato simbólico com uma contenção, próxima de uma espécie de depuradora ascese.

"Uma História de Violência" passa por uma zona próxima do universo de alguém como Quentin Tarantino, para desembocar numa saga familiar que subverte todas as regras do filme de "gangsters", embora citando-as em filigrana. Para atingir o "caminho certo", a narrativa central, o filme opta por interessantes atalhos, próximos da associação livre ou da escrita automática dos surrealistas: a abertura apresenta com grande crueza, mas também grande parcimónia de detalhes, um assassínio em massa, numa estação de serviço, fazendo elipse e estabelecendo "raccord" com o "diner" de uma pequena cidade de província. O nexo só surge quando ambas as micronarrativas se cruzam, levando à eliminação (física, inclusive) dos primeiros motores da acção, para enveredar por uma inesperada história de troca de identidades, de duplicidades forjadas, um dos grandes temas de toda a obra cronenberguiana. Num registo vizinho da "comédia negra", o cineasta combina o excesso barroquizante do seu universo com o rigor de uma "mise-en-scène, em que a noção do corpo e da violência que o corpo encena se sobrepõe a qualquer lógica de género ou de tom predefinido: pela figura de Tom Stall (a que Viggo Mortensen confere uma forte dimensão de agressividade, temperada com uma quase mortífera fleuma) passa a centralidade de um jogo de identidades ocultas e descobertas, como num passe de mágica. Esta noção de prestidigitação, de surpresa exposta a cada plano, acaba por se instituir como a razão de ser de um filme em que as peripécias se anulam perante a força física de um grafismo rugoso e intenso.

O choque de personagens e de situações aparece sempre que se avança na revelação de mais uma reviravolta, combinando um cinismo distanciado, que faz lembrar algum Hitchcock da primeira fase americana, com a tradição de uma sanguinária vénia às sagas dos "gangster movies". Scorsese espreita, sobretudo no início e na sequência exemplar do encontro entre os dois irmãos, quando descobrimos que estávamos a ser manipulados pela falsa culpabilidade do protagonista, preso a uma teia inexorável e "trágica" de passadas malfeitorias.

William Hurt encara o seu irmão mafioso com o conveniente esgar de comédia, transformando, inclusive, os jogos de morte e vingança em "gags" e piruetas. Por seu lado, Ed Harris, na personagem que representa a viragem no semi-western (há ecos de um Oeste selvagem e desesperado "à la Peckinpah") que se perfilava, opta pela caricatura, algures entre "Os Sopranos" e um qualquer veículo para os excessos de James Cagney.

Independentemente de todas estas remissões culturais e de toda a sedimentação referencial, o último Cronenberg evidencia uma estratégia anti-sentimental de escalpelizar as camadas sobrepostas de uma violência omnipresente com impiedoso sangue-frio. A sangue-frio se serve esta história de ajuste de contas abstracta e artificiosa. E a sangue-frio se conduz o espectador de crime em crime, numa espiral de incontido humor negro.

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