O Segredo de Brokeback Mountain

"Li a história de [Annie Prouxl] na altura em que foi publicada e fiquei tão emocionado que não me pude conter", recorda o realizador Ang Lee ao Y, num encontro com a imprensa durante o último festival de Veneza. "Mesmo depois de ter feito "O Incrível Hulk" a ideia ainda me assombrava. Pensei que já alguém a tivesse transformado em filme mas quando percebi que isso não tinha acontecido, senti, no fundo do coração, que se não agarrasse esta oportunidade, iria arrepender-me até ao fim dos meus dias."

Não há outra forma de explicar a razão por que Ang Lee, realizador de origem taiwanesa para quem o inglês é apenas a segunda língua, se atirou assim, de forma tão serena mas simultaneamente tão transbordante, a um dos mais tradicionais géneros americanos, o "western" - e não é a primeira vez que o faz: recorde-se "Ride with the Devil" (1999) - e ainda por cima contando a história de um amor entre dois vaqueiros, dois ícones da masculinidade americana.

Mas Ang Lee é uma anomalia em Hollywood. Faz filmes liricamente pungentes, trazendo o ponto de vista de quem está de fora, o que é decisivo para o pudor do seu trabalho e ao mesmo tempo não impede a sua habilidade de observação sobre realidades que lhe são culturalmente estranhas - por exemplo, quando se debruçou sobre o subúrbio americano em "Tempestade de Gelo" (1997) ou sobre os nobres latifundiários da Inglaterra victoriana de Jane Austen, em "Sensibilidade e Bom Senso" (1995). É fácil de acreditar nele, então, quando diz que é por ser exterior às histórias que ele as quer contar. Para melhor conhecer.

E foi assim que Ang Lee depois da sua primeira grande aposta hollywoodiana, "O Incrível Hulk", filmou aquilo que hoje todos chamam "o filme de cowboys gay". Não gostou da experiência com o filme baseado na personagem de BD - considerado demasiado sentimental para os fãs dos livros aos quadradinhos e demasiado pueril para adultos - e, sensível como é, chegou a considerou abandonar o cinema durante um tempo.

"Fiquei desfeito", admite o realizador, 51 anos, com um sotaque fortemente inglês, mesmo depois de ter vivido durante 25 anos em Nova Iorque. Foi então que descobriu que o conto "O Segredo de Brokeback Mountain", que já queria adaptar desde que apareceu na revista New Yorker em 1997 e ainda estava disponível. O coração voltou a bater.

Lee trasforma o conto de Proulx no filme mais comovente da sua carreira - e num campeão de prémios, périplo que começou o ano passado com o Leão de Ouro de Veneza e que se espera que vá terminar em Março com a coroação nos Óscares. O momento de glória por estes dias abrange o realizador, as duas estrelas do filme, Heath Ledger e Jake Gyllenhaal, e os argumentistas, Diana Ossana e Larry McMurtry (McMurtry, o homem das histórias de solidão nos grandes espaços americanos que deram a Peter Bogdanovich dois filmes sublimes, "A Última Sessão", em 1971, e "Texasville", em 1990) "Quando faço filmes americanos gosto de fazê-los genuínos e sobre assuntos que não me são familiares", diz Ang. "Se por acaso ainda não tiver visto nada do género, tenho tendência a dar esse salto em frente. Gosto de compreender as coisas em vez de saber como elas se fazem. Não penso muito sobre o meu estilo. Limito-me a filmar os actores e o cenário - colocar os actores num cenário a fim de transmitir o reflexo dos seus pensamentos é um estilo muito consistente que adoptei."

E manteve esse tom ao contar esta história de amor entre dois cowboys, exactamente como quem olha de fora. Localizado, no conto de Prouxl, em Wyoming e no Texas, mas filmado no Canadá para reduzir os custos, "O Segredo de Brokeback Mountain" é a montanha gelada onde dois homens, que guardam rebanhos de ovelhas desenvolvem o desejo um pelo outro que irá perdurar através dos casamentos e dos filhos - e através das décadas. Planeiam "viagens de pesca" para se poderem ver, e as esposas (interpretadas por Michelle Williams e Anne Hathaway) ficam em casa com os filhos, enquanto os dois tentam reviver os dias da sua juventude quando o seu amor passou despercebido.

Não é que Lee nunca tenha abordado a temática "gay" num filme ou nunca tenha feito um "western" - "O Banquete de Casamento" (1993), comédia de choques culturais sobre um homem da Tailândia que vive em Nova Iorque e se casa para agradar aos pais, marcou um passo em frente do realizador na América, e "Ride with the Devil", que na altura foi o seu filme de maior orçamento e foi um fracasso. Mas "O Segredo de Brokeback Mountain" é uma coisa completamente diferente. É a sua história de amor mais madura.

"Naqueles tempos [o filme passa-se nos anos 60] era mais difícil sentir aquele tipo de afecto entre homens e isso torna a história mais romântica. As pessoas falam sobre uma história "gay" mas não acho que devam considerar essa a parte mais importante do filme. Não creio que alguma vez tenha feito uma história romântica de amor e por isso esta é muito especial. Estou feliz por ter sido tão bem aceite, até porque quando fiz o filme não fazia ideia que tantas pessoas iriam vê-lo."

o rapaz do campo e o rapaz da cidade

Claro que o facto de ter dois "poster-boys" como cabeças de cartaz, ajudou. "O facto de Heath [Ledger] e Jake [Gyllenhaal] serem jovens e possuírem essa inocência e frescura, e acreditarem no que estão a fazer, funcionou", diz Lee - mesmo se muitos diziam ser um risco para os dois jovens já que poderiam estar a alienar as fãs.

São dois temperamentos, e duas personalidade diferentes, Jake e Heath. E são diferentes Jack e Ennis. O cowboy interpretado por Gyllenhaal, Jack Twist, aceita viver sua sexualidade mesmo que de forma dúplice, o de Ledger (Ennis del Mar) é mais reprimido - o másculo Ennis nunca poderia "sair do armário" e é um amargurado. Todos nós já vimos Gyllenhaal a fazer o papel de jovem sensível noutras ocasiões ("Donnie Darko", por exemplo), por isso Ledger é a grande revelação como Ennis. O australiano tornou-se famoso em filmes para adolescentes que não lhe deram nenhum prestígio artístico - antes pelo contrário - mas é sublime como o solitário Ennis (literalmente, "ilha"), o cowboy por excelência, que raramente diz uma palavra mas que, quando fala, derrama sentimento. "O filme adoptou o ponto de vista de Ennis", concorda Lee. "Não há maneira de ele dizer o que sente, só podemos adivinhá-lo, por isso o filme conta a sua história e com esse tom".

Ledger admite que teve de dedicar todo o seu esforço à personagem. "Foi difícil, não estava receptivo para o papel inicialmente. Acho que com o Jake [Gyllenhaal] aconteceu o mesmo, mas estávamos ambos abertos a uma forma nova de história de amor. É a personagem mais intrigante que alguma vez me propuseram fazer e o argumento mais bonito que alguma vez li sobre um tipo homofóbico que se apaixona por outro homem, e que luta contra as atitudes profundamente enraizadas em si mesmo."

Diz Ledger que as cenas de sexo foram rigorosamente coreografadas. "Depois de filmadas, era como se nos esquecêssemos logo delas. Não nos conseguimos lembrar de detalhes específicos, mas para as conseguirmos fazer tivemos de estar convictos da situação, caso contrário as pessoas ver-nos-iam como robôs. Fiquei muito nervoso e em vez de esconder isso escolhi mostrar, porque a personagem também é assim, insegura, e nesse sentido até foi uma ajuda".

Não obstante, Ledger - que tende a mexer nervosamente os olhos e boca, a sacudir os braços, e não consegue estar quieto - não tem nada a ver com o estoicismo inquieto de Ennis. O que tem em comum com a personagem é a experiência ao ar livre, uma vez que, ao longo da vida, visitou a quinta de familiares na Austrália rural e montava a cavalo desde tenra idade. Até tem um tio que é cowboy e é homossexual, o que se tornou numa inspiração para a sua personagem.

"Ele é irmão do meu padrasto e tem cerca de 60 anos", conta Ledger. "Quando o meu tio era mais novo e ainda vivia com a família, fingia que não era "gay". Finalmente, um dia o pai perguntou-lhe e ele respondeu que sim, que era homossexual. O pai ficou em estado de choque durante semanas mas depois veio ter com ele e disse: "ok, quero que vás ao hospital e resolvas isso. É assim ou sais de casa e nunca mais voltas". E o meu tio saiu de casa e nunca mais voltou. Ele contou-me como se sentiu livre quando saiu porta fora. Esta é uma versão mais curta da história de Ennis, sobre um homem que luta contra a sua ascendência e contra a tradição".

Já Jake Gyllenhaal, filho da guionista Naomi Foner e do realizador Stephen Gyllenhaal, cresceu em Los Angeles e refere-se a si próprio como um rapaz da cidade. Também é um dos meninos bonitos de Hollywood os seus olhos azul-celeste poderão ter influenciado Lee a contratá-lo como o parceiro mais feminino do relacionamento do filme - principalmente devido à voz profunda e ao andar másculo de Ledger.

"Tanto o Heath como eu pensámos logo que era essa a intenção e lutámos contra isso porque era um bocado óbvio", refere Gyllenhaal. "Naquela cena quando nos beijamos após quatro anos sem nos vermos, houve uma decisão deliberada de parte a parte quando o Heath me atira contra a parede: eu atiro-o de volta contra a parede. A agressividade e a forma física são semelhantes - mesmo se, quando ele começa a dar-me socos, dá a sensação de que ganha aquelas lutas."

No entanto, Gyllenhaal não se entregou de corpo e alma a "O Segredo de Brokeback Mountain", como Ledger o fez. Não por causa da questão homossexual: "Muitas pessoas perguntaram-me se eu não tinha medo de filmar cenas de sexo com um homem. Se calhar tem a ver com o facto de viver em LA e alguns dos meus amigos e familiares serem "gay". Foi natural para mim". Mas numa cena de nudismo onde o par salta de uma falésia, por exemplo, é um duplo que substitui o actor. "Em última instância acho que o Heath estava super entusiasmado em fazer essa cena, ele é australiano e é mais do tipo que gosta de situações de alto risco. Ao contrário de mim." E ri-se. "Portanto, fiquei só a incentivá-lo". Era demasiado arriscado. "Tinha acabado de fazer o "casting" para "Jarhead" [de Sam Mendes] e estávamos a trabalhar com duplos, que me disseram que tínhamos que dobrar o corpo para não partirmos a perna porque aquilo lá em baixo tinha pouca profundidade. Não queria partir as pernas, queria poder fazer o "Jarhead". Paul Newman, um amigo da família, confessou que quando ele e Robert Redford saltam naquela cena de "Dois Homens e um Destino" /"Butch Cassidy and the Sundance Kid" [1969] foram duplos a fazê-lo".

o fantasma de Matthew Shepard

A cena mais fantasmagórica de "O Segredo de Brokeback Mountain" é aquela em que Ennis, quando criança, presencia o cadáver de um cowboy, linchado por ser "gay" - puxado, quilómetros e quilómetros, pelo pénis. Sem querer ser demasiado sensacionalista, Lee só mostra o necessário. "É também assim no conto de Annie Proulx", diz Lee, "e acho que faz com que a negação da homossexualidade da personagem de Ennis se torne mais forte quando vê essa cena. Discutimos muito sobre o que é que público conseguiria digerir, e ponderei filmar a cena de maneiras diferentes, algumas mais explícitas, e outras onde só se falava sobre isso e se via só a cara da criança. Falei com a minha família e amigos sobre quanto podia mostrar e agora sinto que foi a medida mais acertada".

"É curioso, o chamado "incidente de Laramie" [o jovem Matthew Shepard, estudante gay em Laramie, Wyoming, foi espancado e abandonado à morte em 1998] aconteceu um ano antes de Annie ter escrito a história. Ela estava assustada quando a escreveu e ainda mais assustada ficou quando esse episódio aconteceu. Acho que a cena devia estar no livro, porque faz parte da realidade das vidas daquelas pessoas, mas não tinha tanta certeza se devia estar no filme, por isso mostro só um rasgo do que aconteceu. Acho que as pessoas são muitos menos tolerantes em relação aos filmes."

Mesmo se o facto de fazer um filme sobre o amor homossexual foi um risco em relação ao "mainstream" de Hollywood - e é por isso que Lee e os produtores têm promovido o prisma do amor por oposição à história "gay" - não foi preciso um esforço colossal a Lee para fazer este filme como lhe costuma ser exigido quando faz um filme em língua chinesa.

"Os filmes chineses têm de ser muito pessoais. Trabalho no duro a todos os níveis e quando acabo fico exausto", diz, rindo-se com uma expressão desesperada. "Fazer filmes americanos é como um tempo de recuperação para mim. Posso viver uma vida normal e saudável. [Lee é casado e tem dois filhos]. Fazer uma nova aventura chinesa quase me mataria. É mais difícil lidar com coisas que nos são mais familiares. A distanciação que posso ter em relação a um filme americano ajuda-me realmente a fazer arte a partir de algo. Tem-se um olhar mais penetrante que permite ver através da textura até às entrelinhas. Para mim é uma liberdade incrível trabalhar na América." Mesmo com uma história do fundo do coração de dois "Malboro men" apaixonados.

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