Dança de esqueletos

Deve-se naturalmente começar por dizer que "A Noiva Cadáver" é o novo filme de animação de Tim Burton. Mas logo aí apetece perguntar, nem que seja retoricamente: não serão todos? Haverá assim uma fractura tão evidente - ao nível do "olhar", digamos simplificando - entre o Tim Burton de animação e o Tim Burton de "live action"? Se há sempre choques de "natureza" no cinema de Burton (e podíamos isolar isso como um "tema"), parece evidente que a natureza do seu cinema também resulta de uma mescla entre "ordens de realidade" - são mais "reais" os cenários de "Charlie..." ou os de "A Noiva Cadáver"?

Há mais "carne" na personagem de Eduardo Mãos de Tesoura ou no Jack do "Estranho Mundo"? Vê-se "A Noiva Cadáver" e a última coisa que ocorre é que já passaram doze anos desde "O Estranho Mundo de Jack", que fora a última experiência "não-ambígua" (nestes termos) de Burton na animação, embora aí a realização fosse creditada a Henry Selick (aliás, como em "James e o Pêssego Gigante"), e não ignorando que aqui na "Noiva Cadáver" há um co-realizador creditado, Mike Johnson. Mais: vê-se "A Noiva Cadáver" e nem é forçosamente "O Estranho Mundo de Jack" que mais vem à memória. Antes outros filmes de Burton, e outros filmes que não sendo de Burton são presenças planantes em vários filmes dele. "A Noiva Cadáver" traz impresso um "universo", ou pelo menos um "imaginário", e perante ele é de facto legítimo que se diga que é tudo "a mesma coisa".

Evidentemente, a animação foi a área específica da formação de Tim Burton. Mas dir-se-ia que isso, em vez de explicar o cinema de Burton, é explicado por ele. É a sua obra que nos explica por que é que Burton começou pela animação, e não o contrário - é algo que tem a ver com uma "visão do mundo" e com a descoberta das ferramentas para a exprimir. Talvez por isso (e nesse sentido seguem algumas das reservas que temos visto expressas sobre o filme) perante "A Noiva Cadáver" se fale de reiteração e de "congelamento" de um universo. Reiteração, é certo; mas não autoriza por si que se fale de "rigidez" (num filme onde nem os abundantes cadáveres o são). Pelo contrário, "A Noiva Cádaver" é mobilidade e explosão, condensação de elementos com a faceta de "divertimento" voltada para cima mas sem obliterar a existência de uma dimensão poética "escura" e - aqui com toda a propriedade - "subterrânea": aquele plano no fim em que a "noiva cadáver" desaparece transmutada em borboletas é dos mais bonitos que vimos este ano (e estamos obviamente a incluir nas contas centenas de horas de "acção real").

"A Noiva Cadáver" é "explosão", dissemos, filme construído sobre uma absoluta euforia figurativa e referencial. Tocamos aqui, de alguma maneira, o cerne do universo burtoniano (ou melhor, toca ele): a coexistência entre uma poética glauca e "espectral", que não podia de resto convocar mais directamente a égide do Poe (mais o dos poemas que o das histórias) dos amores doentios e das paixões sepulcrais, e a sua festiva superação, convenientemente musical e carnavalesca.

"A Noiva Cadáver", trocada a história por miúdos, propõe um confronto entre um "mundo dos vivos" e um "mundos dos mortos" - mas a questão está em saber qual é o mundo dos vivos e qual é o mundo dos mortos. O cinema, é certo, já imaginou muitas vezes o "além", em versões mais optimistas ou pessimistas, mais inventivas ou tradicionais - mas que alguém tenha filmado assim um mundo dos mortos como um cabaret permanente, com cores de musical hollywoodiano e euforia de festa popular mexicana, eis algo que deve ser uma estreia. É uma das sequências mais extraordinárias do filme, aliás, essa entrada do protagonista Victor (boneco que tem a figura e a voz de Johnny Depp) no mundo desconhecido que existe por baixo do cemitério: contraposto ao mundo nocturno e em "gama de cinzentos" que é o mundo "above", o mundo "real", é tudo questão de cor e ritmo, como nas fantasias musicais disneyanas de outros tempos (e a imaginação segue sempre a galope, por entre incontáveis trocadilhos e apartes, verbais ou visuais). Se a questão fôr fazer uma "reperage" dos elementos convocados por Burton, a lista podia ser longa: de Poe ou Lovecraft a Disney e ao musical clássico hollywoodiano, como já dissemos, a um imaginário folclórico da morte e do "cadáver" (as caveiras e os esqueletos como bonecos do "dia dos mortos" mexicano), um pouco de Shakespeare ("to be or not to be", eis a questão, com caveira e tudo), mas não menos importante uma vénia àquele terror paródico do "low budget" da Hollywood de 50 e 60 (que é tanto matriz de Burton como partilha com ele raiz e imaginário), as séries B de Tourneur e sobretudo Roger Corman (e se não fosse para sinalizar isso que andaria a fazer por "A Noiva Cadáver" uma larva que tem o rosto, a voz e a dicção de Peter Lorre?).

Alegre e quase libertário (notável, a cena do "regresso"dos mortos e do reencontro com os vivos), percorrido por uma leve tristeza nada sublinhada e toda resolvida em simplicidade, "A Noiva Cadáver" é uma proposta irrecusável - afinal ainda há filmes de Natal.

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