África, de quem?

À partida é a mais estranha das conjugações: Fernando Meirelles, o realizador de "A Cidade de Deus", ao leme de uma "intriga internacional" de John Le Carré, com produção britânica e elenco maioritariamente da mesma nacionalidade.

Mas num filme como este, todo erguido em torno das relações entre o primeiro e o terceiro mundo (sim, "globalização") e ambientado entre a Europa e a África, o facto de haver um brasileiro aos comandos talvez seja mais do que pormenor: "O Fiel Jardineiro" é um filme que parece ter uma disponibilidade melancólica no olhar sobre África, seja o caos e a miséria ou sejam as maravilhas, que provavelmente é contributo de Meirelles e não vem, pelo menos exclusivamente, da história de Le Carré. História essa que, mais do que uma intriga de diplomacia e espionagem, é um esventrar da relação (económica e política) entre o mundo ocidental, rico e "corporatizado" e a África, de governos corruptos e populações na miséria.

O alvo directo de Le Carré é a indústria farmacêutica internacional, que está no cento desta história de abusos e explorações cometidos sobre a população africana (centenas ou milhares de cobaias de um novo medicamento por aperfeiçoar) com o beneplácito e a protecção de elementos altamente colocados na hierarquia do Estado britânico - um retrato do mundo em que a globalização ainda não é necessariamente "boa para África" (demasiadas cumplicidades e promiscuidades entre o Ocidente e a corrupção instalada nos governos africanos) mas África é, seguramente, "boa para a globalização".

Dentro deste contexto político ergue-se a história de um casal de opostos. Ele (Ralph Fiennes) é um diplomata de carreira, conservador, relativamente anestesiado se não mesmo alheado (do que gosta mesmo é de cuidar do jardim); ela (Rachel Weisz) é uma jornalista de pêlo na venta, contestatária e politicamente motivada.

Ele é colocado no Quénia e ela acompanha-a - um dia aparece morta e esse é o princípio do filme, todo assente numa estrutura de "flashbacks": por que foi morta a rapariga? Que descobriu ela? Quem a matou? O alheado diplomata-jardineiro pegará então no ponto em que a mulher deixou a investigação, completando-a e deslindando o caso como se essa fosse, também, a sua maneira de viver o luto.

Esse aspecto é sedutor: durante boa parte da sua duração "O Fiel Jardineiro" é um filme de luto, com um Ralph Fiennes mais sonâmbulo do que nunca, em absoluta vacilação. Toda a relação entre ele e a mulher é dada por "flashbacks", espinhos na memória que vão contendo, igualmente, dados narrativos importantes. Na parte final o desmanchar da intriga prevalece sobre esta soturnidade inicial, e essa dimensão perde-se um pouco (o que é pena).

Meirelles nunca põe as coisas em acelerado, no entanto. Como dissemos, "O Fiel Jardineiro" é marcado por uma impressão de melancolia bastante curiosa, uma espécie de tristeza fatalista no seu olhar sobre África. Faz questão de frisar que se trata de dois mundos diferentes: a cor dominante nas sequencias londrinas é um cinzento metalizado e azulado, contraposto a uma paleta mais rica e mais luminosa para as sequências africanas (procedimento que é bastante óbvio, mas acaba por ter o seu efeito e a sua coerência). Mas Meirelles tem, sobretudo, uma maneira de inscrever a história e as personagens em África que é bastante interessante: é como se não conseguisse limitar a filmar a narrativa e os actores e precisasse de estar sempre a olhar para o lado, a mostrar a ficção a desenvolver-se num cenário real feito de pessoas reais.

Por alguma razão, os momentos mais tristes de "O Fiel Jardineiro" são aqueles em que (salvo erro, por duas vezes) no fim de uma cena de diálogo Meirelles, em vez de cortar e passar o plano seguinte, conduz a câmara numa panorâmica sobre o que está em volta - bairros de lata nos arredores de Nairobi, e gente, imensa gente.

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