O Fiel Jardineiro

Quem esperava que depois do sucesso de "Cidade de Deus" o brasileiro Fernando Meirelles repetisse a receita e voltasse a mergulhar no mundo de violência, favelas e miséria ficará desiludido com "O Fiel Jardineiro". Mas quem pensar que ao adaptar um romance de John Le Carré passado no Quénia, sobre a corrupção das grandes farmacêuticas e dos diplomatas, e com uma trágica história de amor, Meirelles não conseguiria ser ele próprio também se engana. "O Fiel Jardineiro" é uma inesperada mistura de Le Carré e Fernando Meirelles.

"Se esperarem de mim sempre "Cidade de Deus" as pessoas vão ficar frustadas", diz o realizador, com um sorriso caloroso e um evidente alívio por poder falar português depois de horas de entrevistas em inglês. "Não estou a tentar preencher nenhuma expectativa. Quero fazer filmes sobre os assuntos que me interessam, que me motivam. Sou movido por desafios, gosto de me colocar em situações em que não sei fazer, em que tenho que aprender do começo".

Ao contrário de "Cidade de Deus", que foi desde o início um projecto de Meirelles, "O Fiel Jardineiro" começou por ser um projecto do produtor britânico independente Simon Channing Williams que, no final de 2000, leu o livro de Le Carré e apaixonou-se pela história. Só dois anos mais tarde é que Channing Williams viu "Cidade de Deus" e - depois de Mike Newell ("Quatro Casamentos e um Funeral") se ter mostrado indisponível - convidou Meirelles.

Por essa altura o brasileiro andava a receber imensas propostas. Mas a de Channing Williams chamou-lhe a atenção. Era um desafio. "Trabalhar com astros internacionais, num cenário que não conhecia, com uma equipa nova, fazer um filme inglês passado em África...", resume. O guião já estava escrito e, conta, quarenta dias depois de o ter lido estava em Nairobi a ver locais para filmar. "Não tive tempo para esgotar todas as ideias. Comecei a filmar ainda mexendo no guião". Este tinha inicialmente uma estrutura mais linear, mas Meirelles alterou-o fazendo a história avançar e recuar, cruzando-se no tempo.

quase um home-video.

Os "astros internacionais" ­são Ralph Fiennes ("O Paciente Inglês"), que interpreta Justin Quayle, um diplomata pouco ambicioso e com uma paixão pela jardinagem, e Rachel Weisz ("A Múmia"), Tessa, a mulher de Justin, uma activista, mais nova que ele, empenhada em salvar o mundo. Justin é o tipo de homem que, perante a miséria que o rodeia em Nairobi, diz: "são milhões a precisar de ajuda, não os podemos salvar todos". Tessa é o género de mulher que responde: "mas estão aqui três que podemos salvar".

Fiennes e Weisz podem ser estrelas mas não se revelaram difíceis, pelo contrário. Fernando Meirelles estava habituado a trabalhar sobretudo com não-profissionais. "Na "Cidade de Deus" gastei seis meses fazendo exercícios com os actores, improvisando, deixando-os à vontade com a ideia de criar personagens. Aqui era o oposto. Levava os actores para os cenários, ensaiávamos três vezes e parávamos. O Ralph pediu-me isso algumas vezes, para não ensaiarmos demais porque isso tornava-o automático".

As cenas de amor são das mais conseguidas do filme. Os próprios actores reconhecem isso. "Esse tipo de energia entre um casal, cheia de frases inacabadas ou que se transformam em disparates, é algo muito difícil de escrever", explica Fiennes. "Fernando insistiu que improvisássemos. E nós brincámos, brincámos, era isso que era preciso". "Tínhamos a sensação de estar em nossa casa", acrescenta Weisz. "Não há estúdios, nem luzes, nem maquilhagem, é quase um "home-video"". É nesses momentos, em que Meirelles lhes dá liberdade para improvisarem, que lhes saem pequenas frases sem sentido, inacabadas, gestos desajeitados, risos descontraídos. "Essas cenas ajudam porque criam uma relação de intimidade, de verdade", concorda o realizador. "Depois, quando há outra cena em que o diálogo já é mais construído, mais escrito, você já estabeleceu a relação entre eles".

Mas esta história de amor - sabemo-lo logo no início do filme - acabará de forma trágica. Tessa é brutalmente assassinada. A incansável activista queria saber demais, interferir demais, e tornara-se demasiado incómoda para muita gente. Justin só começará a perceber o mundo da sua mulher, aquilo por que ela lutava, o que a indignava, depois dela morrer. E, pouco a pouco, o "fiel jardineiro" vai-se transformando.

Ao escrever o livro, Le Carré quis homenagear uma activista que conhecera, Yvette Pierpaoli, e denunciar a forma como as grandes empresas farmacêuticas usam os africanos como cobaias para testar medicamentos, por vezes com consequências fatais. Meirelles diz que este lado político do filme o interessou bastante, mas rejeita a ideia de que é um realizador de causas, embora tanto em "Cidade de Deus" como em "O Fiel Jardineiro" tenha acabado por se envolver, para lá das filmagens, com as comunidades com as quais trabalhou - os "favelados", no primeiro caso, e os habitantes de Kibera, um gigantesco bairro da lata nos subúrbios de Nairobi, onde parte de "O Fiel Jardineiro" foi filmado. "É uma coincidência que estes filmes tenham isso por trás", garante, explicando que no caso de Kibera quem se envolveu mais foi o produtor, Channing Williams.

a perspectiva do terceiro mundo.

Mas, antes disso, foi Meirelles quem conduziu a equipa até Kibera. Aliás, foi o brasileiro que trouxe África, em toda a sua força, para este filme. Depois de passar pelas suas mãos, o guião original perdeu bastante das subtilezas sobre as relações de classe nos meios diplomatas britânicos (o lado Le Carré), que nada diziam a Meirelles, e ganhou cenas nas ruas de Kibera, filmadas ao estilo do brasileiro. Apesar de ter ao seu dispor uma impressionante máquina de produção, o que Meirelles mais gosta é de sair com duas ou três pessoas e uma câmara para as ruas e filmar aí, entre a confusão da vida quotidiana. É nesses momentos que nos lembramos de "Cidade de Deus". As ruas das favelas explodem no ecrã, em movimento e cores, planos rápidos, câmara em corrida - um estilo a que já chamaram "de guerrilha", que Meirelles desenvolveu na sua longa carreira como realizador de filmes publicitários, que lhe permitiu fazer da sua empresa uma das maiores da América Latina neste mercado e que, ele próprio confessa, foi a sua escola, a par da arquitectura que estudou e que também define o seu olhar no cinema (para além de lhe ter permitido construir a casa em que vive, nos arredores de São Paulo).

Alguém escreveu que Meirelles consegue "ver a beleza na brutalidade", e tornar a miséria bela. Ele diz que não é exactamente isso. "Quando a gente chega ao Quénia fica com a impressão de que é um lugar muito colorido, vibrante, com muita vida. Tentámos fazer a fotografia reforçando as cores, para que numa cena de 30 segundos, um minuto, o espectador tivesse essa sensação".

Essas pinceladas de cor forte, atiradas à cara de quem vê, desaparecem quando o filme passa, momentaneamente, para a Europa. Londres e Berlim aparecem cinzentas, chuvosas, tristes. "É só para criar um maior contraste. Fazendo Londres e Berlim mais monocromáticas, na hora em que cortamos para África, África pula no seu olho, você surpreende-se".

África, portanto. Foi essa uma das grandes razões que levaram Meirelles a lançar-se neste projecto. De repente viu-se no turbilhão alucinante de Nairobi, rodeado de uma equipa de produção como nunca tivera no Brasil - foram trabalhos muito diferentes explicou uma vez e "não apenas porque o vinho era melhor e viajava em primeira classe". "Num filme como "Cidade de Deus" você quer filmar ali mas não pode, porque o "set" não está preparado, só se preparou um lado. Nesta produção, qualquer coisa que eu quisesse acontecia, se eu pedisse elefantes, eles estavam lá". Por outro lado, ao contrário do Brasil, estava num país estrangeiro. "Não senti muito isso", confessa. "Quando filmei "Cidade de Deus" também estava de fora. Não conhecia as favelas. Era estrangeiro ali também".

Mas é o próprio Fernando Meirelles quem admite que trouxe "uma perspectiva de Terceiro Mundo" para "O Fiel Jardineiro". Foi ele quem, no meio dos diplomatas e empresários corruptos vindos de uma Londres cinzenta para a protecção das suas mansões em Nairobi, jogando golfe de costas voltadas para os africanos transformados em cobaias pelas farmacêuticas, no meio de tudo isto, fez explodir África.

Meirelles move-se com à vontade no meio da máquina de produção e promoção do seu novo filme. Mas Hollywood não é, neste momento, tentação irresistível. Para o seu próximo projecto, vai voltar ao Brasil, e trabalhar numa história sua. "É um filme sobre a globalização, filmado em várias partes do mundo. São sete histórias de vidas diferentes". Uma das histórias é brasileira, e falada em português, mas há também uma passada no Quénia. Depois disso, pensa já noutro projecto, mais intimista, sobre a morte.

Prestes a fazer 50 anos, é no Brasil, com a mulher Cecília e os dois filhos, que Fernando Meirelles quer ficar. Para fazer como Pedro Almodóvar faz em Espanha: filmes brasileiros, falados em português, mas vistos em todo o mundo.

Sugerir correcção
Comentar