Viagem fantástica

Impõe-se relativizar. O mestre da animação nipónica habituou-nos mal - o nível de "Princesa Mononoke" e, sobretudo, do magistral "A Viagem de Chihiro" fez-nos acreditar que Hayao Miyazaki era capaz de tirar obras-primas da cartola a cada filme. Ora, "O Castelo Andante", meditação em tom de conto-de-fadas sobre a responsabilidade e a reconstrução do núcleo familiar com mensagem anti-guerra, é uma decepção face aos anteriores, o que quer dizer que é "apenas" muito bom.

A música sublime de Joe Hisaishi e a fervilhante inventividade visual de Miyazaki continuam a criar algumas das mais extraordinárias imagens do cinema contemporâneo - e há inúmeras em "O Castelo Andante" - mas, aqui, o argumento nunca se ergue à sua altura, apesar da presença dos temas recorrentes do director nesta adaptação de um romance da escritora inglesa Diana Wynne-Jones, aluna de J. R. R. Tolkien.

Ambientado num reino fantástico algures entre a Inglaterra vitoriana e a Europa Central do século XIX (o que pode explicar a estranheza de ouvir estas personagens falarem japonês na versão original, que estreia em paralelo com uma versão dobrada em português), com bruxas e feiticeiros a conviverem com um arsenal bélico retro-futurista, "O Castelo Andante" segue o percurso de Sophie, jovem chapeleira que procura desfazer a maldição que a envelheceu, partindo em busca de um poderoso feiticeiro que vive num castelo em movimento, construindo no processo uma família nuclear (estranha e disfuncional, mas não menos família) a partir daqueles que ali procuram a esperança de ultrapassar os seus problemas. Conciliando a predilecção do realizador japonês por histórias de "viagens iniciáticas" (Sophie é prima direita de Chihiro) com uma mensagem pacifista talvez demasiado sublinhada, o guião acaba por sofrer de um desequilíbrio estrutural que se detém em excesso na construção do ambiente e das personagens para, depois, acelerar inexplicavelmente na resolução da narrativa.

Contudo, isso acaba por ser uma questão menor face ao deslumbramento visual de que Miyazaki é capaz, porque é um daqueles casos em que não interessa onde se vai, mas sim como. Já ninguém faz animação com este nível de requinte - aliás, já ninguém faz animação tradicional, ponto; mesmo a Disney, último bastião e distribuidora americana de Miyazaki, se reconverteu exclusivamente na animação por computador - e essa sensação de artesanato à beira da obsolescência traduz-se na peculiar vibração do filme, que insiste teimosamente em descobrir uma nesga de felicidade por entre todas as tragédias que rodeiam as personagens (o que o torna, também, num objecto de resistência em tempos conturbados). A arte de Miyazaki é, de certo modo, como o castelo andante que lhe dá título: uma excentricidade que parece não ter rei nem roque nem forma mas, lá dentro, encerra todo um universo maravilhoso, apenas aberto àqueles que o quiserem procurar. Há mais vida nestas duas horas do que em 95 por cento da produção cinematográfica em exibição - e nem é preciso que "O Castelo Andante" seja a melhor coisa que Hayao Miyazaki já fez (e não é) para o recomendar efusivamente.

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