Homem à água

O filme de Wes Anderson começa a ser brilhante no título: "The Life Aquatic with Steve Zissou". Não é só imaginativo, tem também uma musicalidade belíssima. Admitamos: era difícil vertê-lo para português e manter as mesmas qualidades. Mas "A Vida Aquática" não soaria mal, deixando cair o "com Steve Zissou". Não soaria pior, em todo caso, do que "Um Peixe Fora de Água", título que ainda por cima é sensaborão e disparatado, uma autêntica traição: se houvesse absoluta necessidade de fugir à neutralidade poética do original, mais valia ter optado por "Um Homem Dentro de Agua". Seria igualmente disparatado, mas pelo menos faria sentido.

É que na verdade este filme é a história de um homem que vive, e sempre viveu, dentro de água. Rodeia-se de água - no seu gabinete no barco em que trabalha e (praticamente) vive, tem por detrás da secretária um enorme aquário onde se passeia uma magnífica orca. É um homem anfíbio, daqueles que em terra precisam de se molhar regularmente, como se vê na primeira cena de "The Life Aquatic" (e no seu primeiro gag minimalista), em que Steve Zissou/Bill Murray está num festival de cinema italiano a apresentar o seu último filme e um empregado atravessa o palco para trazer para a mesa um jarro de água. A água manda na vida de Steve Zissou, esse é o seu meio, e ele nunca quis outro - não avançaremos por metáforas uterinas, mas já que falamos disso sempre adiantamos que esse é exactamente o ponto e não há outro calor que Zissou procure na água que não esse.

Já estamos a complicar tudo. Ou não: maternidades e paternidades, reais ou simbólicas, evitadas ou desejadas, abundam no filme de Wes Anderson. A família era o "tema" de "Os Tannembaums", de alguma maneira é-o também aqui. E Bill Murray até é uma "father figure" para as outras personagens, para a de Owen Wilson sobretudo (ele que descobre no princípio do filme que Zissou é o seu pai biológico) mas não menos para os restantes membros da sua equipa (o mais belo plano com Willem Dafoe: o seu amuo quando suspeita que deixou de ser o "filho" predilecto). Só que é um pai renitente: a frase chave do filme (enfim, a frase que suspeitamos ser a frase-chave do filme) é aquela tirada em que Zissou explica que "odeia pais e nunca quis ser um". Di-lo no mais puro estilo "billmurrayesco", como se estivesse muito longe das implicações do que está a dizer. Fica-se sem perceber por que o diz: é como se estivéssemos subitamente no ponto de vista da filha ausente de Clint Eastwood em "Million Dollar Baby", nada é esclarecido.

Mas o filme ilumina-se: é história de um homem que faz o possível por ser adulto sem deixar de ser criança (a tal ponto que vive dentro dum brinquedo gigante), por constituir uma família sem ter que ser "pai". Voltava aqui a haver lugar para metáforas uterinas com a água - mas não é preciso metaforizar: há um útero real e "visível" em "The Life Aquatic", o da personagem de Cate Blanchett (que estava grávida de facto durante a rodagem), que na ambiguidade da atracção que exerce (a atracção pela sensualidade feminina e a atracção pela maternidade não são, numa perspectiva masculina, exactamente a mesma coisa) será alguém a ter em conta na relação entre pai e filho. Mas isto é que já é complicação desnecessária. Ou, outra vez, não: é com uma imagem feliz de paternidade que o filme acaba, Murray passeando um miúdo aos ombros pelas ruas de uma cidadezinha italiana.

Odisseia.

Como todos os filmes de famílias "alternativas", "The Life Aquatic" também é um "buddy movie", um filme escorado numa relação de amizade. A questão é que o "buddy" de Steve Zissou, que se calhar é também a sua "father figure", está morto desde o princípio do filme (é a personagem de Seymour Cassel). Morreu comido por um tubarão-jaguar durante a rodagem do último filme de Zissou (que, se ainda não se explicou explica-se agora, é um realizador de documentários marinhos obviamente decalcado de Cousteau). Isso dá a Zissou um propósito para uma nova missão: encontrar esse raríssimo tubarão-jaguar. Perguntam-lhe, no princípio (no tal festival de cinema italiano, divertidíssima caricatura americana de um "festival de cinema europeu"), pelo "propósito científico", e ele responde, com ar de quem acha naturalíssimo: "vingança". É a partir daí que "The Life Aquatic" se desenvolve com uma espécie de "odisseia" (afinal de contas parte-se do Mediterrâneo, mesmo que depois haja piratas filipinos e outras bizarrias) com uns pozinhos de "Moby Dick". Uma odisseia, ou mais propriamente uma "oddity": o jogo de palavras ("oddity/odyssey") criado por David Bowie em "A Space Oddity" tem dupla razão para ser convocado. Porque a cena em que finalmente se vislumbra o tubarão-jaguar - e que é uma espécie de clímax "anti-climático" para o filme, resolvido em pura e maravilhada contemplação - evoca a viagem final do astronauta no filme de Stanley Kubrick, mas com o ADN de "2001-Odisseia no Espaço" cruzado com o de um filme de Walt Disney (foi Henri Selick, colaborador de Tim Burton em "O Estranho Mundo de Jack", quem se ocupou da animação no filme de Anderson). E porque "The Life Aquatic", sendo uma "odisseia", tem um coro: Seu Jorge, o brasileiro que Wes Anderson foi buscar à "Cidade de Deus" para o depositar ao fundo de inúmeros planos e inúmeras cenas, cantando à viola versões em português de canções de... David Bowie.


Num filme com tantas "trouvailles" e ideias geniais, esta é só mais uma. Desconfiamos que é preciso rever (e voltar a rever) "The Life Aquatic". Porque é um filme riquíssimo, construído numa espécie de opulência minimalista que acumula os pequenos detalhes, os olhares desapercebidos, os gestos aparentemente insignificantes, o humor seco (paradoxo, num filme com tanta água...), a "mise-en-scène" do pormenor sem sublinhados, os pequenos toques lancinantes encenados como se ninguém desse por eles, sempre em "understatement". Wes Anderson, depois de "Rushmore" (que caiu como um meteorito sem aviso, na altura não sabíamos bem como lidar com aquilo...) e de "Os Tannenbaums", confirma-se como a mais promissora razão para acreditar numa "nova geração" do cinema americano - uma geração que faz a síntese entre a própria tradição americana e aquilo que absorveu doutras paragens, seja do cinema europeu seja do oriental. Isto talvez seja algo de lapidarmente "novo", e é para ser seguido com atenção.

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