Estômagos no sítio

Foi o filme que Tarantino fez muita força para premiar em Cannes de 2004, multiplicando-lhe os elogios. Como cartão de visita ou "palavra de passe" para "Oldboy" - que foi aquilo em que o apreço de Tarantino se transformou - é suficientemente ambíguo para despertar tanta curiosidade como desconfiança: afinal, o homem de "Kill Bill" tem gostos "estranhos" que tantas vezes se reflectem numa atracção por "lixo" (no sentido neutro do termo) que não é necessariamente transmissível.

Ora bem (supresa?): não é preciso uma pessoa chamar-se Quentin Tarantino nem ter um "penchant" especial por material reciclável para gostar de "Oldboy". Pese embora - claro - tudo o que ele tem de "reciclado", e aliás podia-se dizer que "Oldboy" trabalha a partir de resíduos de muitas coisas diferentes, das tradições cinematográficas do "film noir" (a americana e a oriental, "made in Hong Kong" sobretudo) às mais patológicas (vem de "pathos", supomos) obsessões da tragédia e da dramaturgia clássicas (e falaremos de incesto, tema "greco-shakespeareano", mesmo dando de barato a ignorância sobre se para um realizador coreano, como é o caso de Park Chan-wook, o peso e as referências serão exactamente as mesmas).

Claro que "Oldboy" é também um filme extraordinariamente violento, gráfica e psicologicamente. Uma parte do entusiasmo de Tarantino passará, aliás, por aí. É que "Oldboy" também é um bom sinal da eterna reciclagem (Lavoisier, um dia isto será consensual, referia-se mais ao cinema do que à natureza) que os filmes vão operando sobre si próprios. Ou seja, especificando: se Tarantino, como explicita em "Kill Bill" e se nota desde "Cães Danados", foi bastante influenciado pela ritualização da violência no cinema oriental, "Oldboy" parece um caso em que as influências já deram a volta, um filme que responde em pingue-pongue à reciclagem feita pelo americano. Se não, lembre-se um dos mais célebres momentos de todo o cinema de Tarantino (a "cena da orelha" nos "Cães Danados") e negue-se, se for possível, que essa cena tem (pelo menos) um exacto equivalente em "Oldboy" - a cena em que o protagonista tortura um pobre diabo qualquer, para lhe extorquir informação, arrancando-lhe os dentes um a um, a sangue frio, com Park Chan-wook a exceder-se nos requintes de sadismo com que filma a "cerimónia".

Mas essa violência, gráfica, "cinematográfica", é já algo transformado em "código", marca de fabrico, por muito estômago (e avisamos, como dizia o outro: é preciso tê-lo no sítio) que "Oldboy" exija. Curiosamente, é bem mais perturbante (e mais ameaçadora para o estômago, na verdadeira acepção da palavra) a cena, eventualmente simbólica (mas se há simbologia ela escapa-nos) em que o protagonista devora, em tempo real e sem aparência de truque, um polvo ainda vivo, num restaurante de "sushi" - mas não podia haver melhor imagem para a voracidade de Park Chan-wook, nem mesmo para crueza, de certa forma "animal", do seu relato desta história. História essa que conduz a um segredo terrível (e "terrível" quer mesmo dizer terrível), e é a maneira como o realizador coreano lida com essa terribilidade (já depois de ela ter sido revelada), transfigurando-a dramaticamente muito para além do "choque" da sua revelação, que faz de "Oldboy" uma verdadeira surpresa e um filme especial.

Espelhos e rimas.

Quando o filme começa, e durante boa parte, não sabemos nada. Nem nós nem o protagonista - encarcerado numa espécie de prisão "privada" durante 15 anos, sem saber por que razão. Uma vez solto, só tem uma obsessão: descobrir quem o prendeu, e sobretudo por que o fez. Virá então a dar de caras com uma elaboradíssima "mise-en-scène" de vingança, arquitectada por um antigo colega de liceu. É aí que entra o incesto (não explicaremos exactamente como, porque a "terribilidade" merece desabar intacta sobre o espectador), fantasma insuperado de um passado remoto, revivido, dolorosamente revivido, como clímax do "complot" do presente. É um filme de rimas - a vingança serve-se em rima; ou em espelho, como se preferir: e o primeiro plano do filme (um homem que segura outro pela gravata, impedindo-o de se suicidar por um arranha-céus abaixo) voltará, reflectido, lá mais no final, em circunstâncias que não sendo bem as mesmas são praticamente as mesmas, mas muito mais (como dizer?) belas. E sobre esta questão (a vingança, o incesto) acrescentaremos apenas algo elementar: é que se é difícil filmar uma história de incesto mantendo uma aura de romantismo, certamente maldito mas de alguma forma "abençoado" (pelo filme), filmar duas dessas histórias, em paralelo ou em sobreposição, isso é tarefa rara e, arriscamos, nunca vista.


A última meia-hora de "Oldboy" é por isso infernal. Já não se está no campo estrito da realidade de um filme policial com uma lógica de "inquérito", mas algures, muito mais longe. Na mais impressionante sequência de todas - e num décor completamente "desnaturalizado", chamemos-lhe um palco - somos confrontados com extremos "arquetípicos", algo que podia vir do Shakespeare mais cruel e mais sanguinolento (há mesmo uma língua voluntariamente decepada - por amor, apenas). E depois tudo acaba na neve, e num banco de jardim. No mais perverso "e viveram felizes para sempre" de que há memória.

Sugerir correcção
Comentar