Requiem de um homem derrotado

E "voilá" Godard, o magnífico Godard, o insuportável Godard. Uma frase e já três vezes o nome escrito - ele bem diz que já ninguém fala dos filmes mas do nome dele, que "Godard" se tornou uma legenda e que os filmes ficam esmagados debaixo dela. É verdade - mas também ninguém o mandou citar tanto aquela frase em que anunciava a vontade de "inscrever o seu nome por todo o lado". O nome intimida (e não é só o nome), é certo, mas acreditamos que ir ver um filme de Godard - ir ver "A Nossa Música" - não é apenas uma experiência de intimidação. É outras coisas: confunde-nos, fascina-nos, intriga-nos, irrita-nos, comove-nos. Godard não faz filmes para nos fazer festas, mas também não quer que a gente vá lá para o acariciar. Esta forma de interpelação reproduz a maneira como o cineasta, hoje, habita o mundo, numa espécie de misantropia tácita e pacífica: não gosto muito do que vejo, pouco me importa que não gostem do que vêem em mim. Como dizia o outro, "não estamos aqui para nos divertirmos". Ele, seguramente, não está.Mas o filme, o que é? "A Nossa Música" divide-se em três partes: a primeira chama-se "Inferno" e é uma montagem de imagens de arquivo, extraídas de vários conflitos do século XX, onde se diz que a morte é "o possível do impossível" ou "o impossível do possível"; a segunda chama-se "Purgatório", passa-se em Sarajevo e mostra Godard na capital bósnia para participar num encontro de escritores; a terceira chama-se "Paraíso" e mostra o sítio a que uma rapariga que conhecemos no "Purgatório" chega depois de morrer, um local que é uma mistura entre as florestas do final de "Weekend" e a terra dos homens-livro do "Fahrenheit 451" de Truffaut, com a particularidade de este "paraíso" ser delimitado por arame farpado e guardado, do lado de fora, por "marines" americanos (o "Paraíso" guardado pelo exército americano, metáfora duma fabulosa ambiguidade).

Portanto, política e história - tudo aquilo que preocupa Godard desde que deixou de ser cinéfilo. O fim da cinefilia godardiana tem, aliás, muito a ver com a história, está expresso nas "Histoire(s) du Cinéma": o cinema devia ter-nos ensinado a ver, devia-nos ter calejado o olhar para as "mises-en-scène", mas ninguém foi capaz de "ver" o III Reich nem Auschwitz antes de terem acontecido. O cinema não evitou o Holocausto, não evitou os genocídios do século XX. Tem, como hipotética redenção, a possibilidade de partir daí - e é donde "A Nossa Música" parte, como nas últimas décadas muitos filmes dele têm partido.

O filme é um lamento, um requiem, uma partitura da desesperança e do desencanto. Um filme de depois da crença. Godard, manifestamente, já não acredita: "A Nossa Música" é um filme de um homem derrotado (os mais belos filmes são estes), mas de um homem que pensa saber-se derrotado antes de todos os outros homens.

O ponto central do pensamento (e do sofrimento) godardiano contemporâneo é duma simplicidade que roça a candura: ele não compreende nem aceita que os homens se continuem a matar uns aos outros, que povos se excluam aos outros - que o "campo" esmague o "contracampo". Como de costume, a interpelação que faz da história e dos assuntos de política segue uma via que é, à falta de melhor termo, poética, atenta às palavras e aos seus sentidos, e sobretudo aos nomes. Aproxima coisas, faz "montagem" com a história. Comenta, por exemplo, a propósito do extermínio dos índios americanos, que esse povo nunca teve um nome, são os "índios vermelhos" porque Colombo os tomou por quem não eram e não sabia que outra coisa lhes chamar. Campo/contracampo: a civilização ocidental, o "campo", apagou o seu "contracampo".

Eis o pecado original segundo Godard, que o mundo ainda expia. É a mesma lógica que lança, no filme, a questão israelo-palestiniana (a questão mais sensível e discutível do filme). Retoma-se a "teoria da estereofonia" gizada em "JLG/JLG": o nazismo "projectou" Israel, Israel "projectou" a Palestina. Os povos são "projectados" por outros. De certo modo, está perto daquilo que diz o poeta palestiniano Mahmoud Darwich, uma das presenças no filme: "Temos sorte que o nosso inimigo seja Israel, porque o mundo se interessa pela questão judaica, e é graças a esse interesse que existimos".

Os momentos mais fascinantes de "A Nossa Música" são aqueles em Godard dá azo ao seu talento de construir pequenos "ensaios" teórico-práticos a partir de imagens, de cinema ou de fotografia. Um sobre Israel e a Palestina, demonstração da sua teoria do campo e do contracampo. Outra, mais violenta, a partir de imagens de prisioneiros de campos de concentração, onde joga com os nomes e as designações, com a sua precisão ou com a sua não menos terrível incerteza. Numa entrevista, Godard comentou assim: "Ponho uma foto de um judeu deportado e escrevo por cima 'judeu', duas imagens depois ponho a foto de um cadáver ambulante em grilhetas e escrevo 'muçulmano'. Dir-me-ão: 'Mas isso é nojento, porque a história dos palestinianos não é a história do holocausto dos judeus'. Mas se eu escrevo 'muçulmano' é porque em Auschwitz os judeus eram alcunhados de 'muçulmanos'. Além do mais, Hollywood era conhecida como a Meca do cinema". Isto é texto extra-filme, mas exemplifica o tipo de aproximações que Godard efectua, uma espécie de exploração das contradições da História, ou do seu nonsense: as palavras e os nomes pregam partidas.

Ainda nesta linha de exercícios, o mais fascinante: a fotografia de uma cidade arrasada, que Godard (numa conferência) desafia os espectadores a adivinharem. Sarajevo, dizem, Hiroshima, Berlim, entre outras cidades martirizadas. "Não", responde Godard, "Richmond, Virgínia", em 1860 e tal. Na destruição é tudo igual, na morte idem - no fim de contas, é a única aproximação possível, a "legenda" não serve (não devia servir) para nada.

Resistamos a prosseguir nesta via "descodificadora", votada ao fracasso. "A Nossa Música" não se descodifica: toma-se como um bloco que assusta, fascina, irrita. Acrescente-se só que Godard filma a cidade de Sarajevo com uma melancolia inexcedível, recorrendo quase sempre às mesmas coisas de há décadas: automóveis que arrancam, automóveis que partem, gente que entra e sai deles, um "travelling" aqui e ali, frases soltas e desconexas. E um pouco de cinema de vez em quando, como qualquer coisa que vem do inconsciente, qualquer coisa insuficientemente recalcada.

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