Os lamentos de África ainda dão à costa

África, final dos anos 60. Tempos de guerra colonial, portanto. O terraço do hotel Stella Maris é uma varanda privilegiada para o Índico. Dali é possível observar a vida local com o intervalo que convém. Olhar de cima, sem os pormenores que estragam a beleza do todo. Uma paisagem livre de violência. Ver apenas uma formidável paisagem amarela, com uma fita de mar azul junto ao horizonte. Uma meia verdade. Uma proximidade distante.

É incompleta a história contada a partir deste mirante, que será talvez uma metáfora do discurso oficial sobre a ocupação portuguesa em Moçambique. Importa, por isso, anular esse prelúdio, acrescentar-lhe um novo ponto de vista. É o que fez Lídia Jorge no seu romance "A Costa dos Murmúrios" (1988). Dez anos depois, a realizadora Margarida Cardoso leu o livro e decidiu transformá-lo em filme, que esta semana chegou às salas. Narrar tudo outra vez.

O terraço é o ponto de partida para a travessia a que Lídia Jorge chama de "a instrução de Eva", a personagem interpretada por Beatriz Batarda. Evita acaba de se casar com Luís Alex (Filipe Duarte), um alferes miliciano destacado para operações especiais. Ali, a noiva, com florzinhas e véu a coroar os cabelos apanhados, ainda está diante de uma configuração idealizada de África. Porque o que Margarida Cardoso nos mostra ainda é a festa de casamento, a obrigação social da felicidade, o beijo calculado a pedido do fotógrafo. É um mundo aparentemente estável, luminoso e dotado de sentido. É uma atmosfera que será progressivamente contrariada ao longo do filme, que perde luz e amplitude à medida que avança.

O livro da escritora algarvia também é composto por duas partes: "Os Gafanhotos", que funciona como o tal preâmbulo, seguido de uma parte notavelmente mais extensa. Margarida Cardoso quebrou a cabeça à procura de uma solução que, na narrativa cinematográfica, traduzisse a oposição entre os dois textos. "Acabei por desistir de trabalhar as duas narrativas em paralelo. Seria complicado estar a levantar cenas com décors e ambientes diferentes. Depois decidi usar a voz 'off' para reactivar a relação entre os dois textos", explica a realizadora.

É então que Beatriz Batarda se desdobra em Evita e Eva Lopo, a mesma pessoa separada de si própria pela passagem do tempo. Com a vantagem de duas décadas, Eva revisita as ruínas da culpa colonial. Assume a palavra numa suposta entrevista, na qual o interlocutor é invisível, como se tentasse recuperar o que estava escondido e camuflado no mundo seguro de "Os Gafanhotos". Só que, embora abandone a ironia e o sarcasmo patentes do livro de Lídia Jorge, a "voz off" - ou seja, Eva Lopo - mantém a humildade de quem sabe que toda memória é reconstrução. Porque o conhecimento do passado é tão precário quanto frágil.

"Sempre insisti numa ideia que Eva condensa numa só frase. É quando a Beatriz Batarda diz: 'a esta distância, quem sou eu para dizer que isto se passou mesmo assim?' Acho isso muito bonito, muito humano. Todos nós podemos dizer isso em algum momento das nossas vidas, acho curioso quando alguém garante que a tem a certeza absoluta de alguma coisa", considera Margarida Cardoso. Aliás, foi por esse motivo que preferiu deixar em aberto o destino de Luís Alex, como se não quisesse inscrever na ficção a verdade monolítica dos factos. Há uma cena de roleta russa, há a possibilidade de suicídio e há ainda a incerteza sobre o desenlace de uma história que, desde os seus primórdios, respirava morte.

Evita encontra em África um Luís Alex profundamente transmutado: do matemático ponderado resta apenas um corpo capaz de executar ordens, um invólucro passível de ser preenchido pelos modelos que lhe são apresentados pelo Capitão Forza Leal (Adriano Luz). Durante a sua "instrução" - para utilizar a nomenclatura de Lídia Jorge -, Evita descobre um alferes que gosta de "fazer o gostinho ao dedo", de puxar o gatilho para acertar a cloaca das galinhas. Daí a alcunha "Luís Galex". A jovem toma ainda conhecimento das atrocidades que ocorrem no teatro militar, compreendendo assim por que é que, nas mãos dos senhores da guerra, as armas se tornam um vício automático.

"Os portugueses tendem a silenciar a brutalidade do que se passou em África. Nós fomos violentos e eu quis evidenciar isso em 'A Costa dos Murmúrios'. Quando eles [Luís Alex e Forza Leal] disparam sobre as aves, elas ficam destroçadas. Está ali expressa a violência. Por uma opção estética, a Margarida Cardoso não quis exibir as aves aos bocados. O meu livro expunha essa brutalidade sem a subtileza que aparece no cinema", acredita Lídia Jorge, que vê como "única concessão" do filme uma camisa manchada de sangue na cena da roleta russa.

o esquecimento e a memória.

Margarida Cardoso reconhece que procurou suavizar as passagens mais duras do livro. Aliás, esta opção estética é coerente com a sua biografia: a experiência da realizadora em Moçambique é a de uma criança que, nos anos 60, apenas recolheu os ecos dos combates. "Moramos lá por doze anos, num hotel parecido com o Stella Maris, onde se hospedavam as famílias dos militares portugueses. Por isso, tudo no filme tem a minha visão infantil. Porque eu me apoiei nas minhas referências emocionais para erguer esta 'Costa dos Murmúrios'. Daí o filme estar tão filtrado, não se vê um homem a dar um tiro na cabeça do outro", explica a autora de "Natal 71" (1999) e "Kuxa Kanema" (2003), dois documentários que também se debruçam sobre Moçambique.

Lídia Jorge trabalhou como professora em África, testemunhou relatos como o de um aluno que, ao entrar na sala de aula, lhe deu conta de que era um dos únicos sobreviventes da sua aldeia. Por outras palavras, conviveu com a ideia de um massacre. Já Margarida Cardoso absorveu a violência por ricochete: como no mito da caverna, sofria com as atrocidades através das sombras que a mãe projectava sobre a casa. Uma espécie de dor travada, barragens que se transbordam em sequência. Uma porção de assombro que vinha dos combates e impregnava todos aqueles que nunca tiveram um revólver em punho.

"É um pedaço da minha infância que precisei reconstruir. Não só porque havia um esquecimento histórico implícito em tudo o que ouvíamos, mas também porque tudo isso se reflectia no espaço doméstico. Nós nunca dizíamos as palavras como elas deveriam ser ditas. Respirava-se a guerra e os seus temores. O medo eu não sentia directamente, espelhava-o a minha mãe. Mesmo não tendo presenciado nada de terrível durante a guerra, a criança que fui testemunhou esta violência contida, doméstica, não falada", diz Margarida Cardoso. Isto esclarece o privilégio das tomadas de interiores, realizadas na Costa da Caparica, sobre as filmagens externas em Maputo.

Quando dezenas de negros são envenenados intencionalmente com álcool metílico - garrafas vinham ter à costa como um convite ao aniquilamento -, os cadáveres amontoam-se no areal e são carregados por um "dumper" como entulho. No livro, imaginamos as moscas que lhes beliscam os corpos escuros, a mancha da morte que suja a vista perfeita do terraço do Stella Maris. A câmara de Margarida poupa-nos esta visão sórdida, fazendo do veículo funerário improvisado um sinal da matança.

"Indago-me se as pessoas que não leram o livro compreenderão o significado do 'dumper'. É mais uma vez uma opção estética, vejo a obra de Margarida Cardoso como um trabalho autónomo, de que gosto imenso", frisa Lídia Jorge, que elogia ainda a concretização da nuvem de gafanhotos, a imagem simbólica mais forte do romance. Com proporções quase bíblicas, uma chuva de ortópteros pinta de verde a costa de Moçambique, como se quisesse encobrir o assassinato de dezenas de homens negros.

"Acredito que existe o discurso do esquecimento e o da memória. E, para mim, o esquecimento é a memória que foi construída em cima de coisas falseadas. Porque penso que não existe o verdadeiro esquecimento. As pessoas não esquecem as coisas mais duras, elas inventam qualquer coisa que substitui por aquele incómodo. O que o livro da Lídia Jorge nos mostra é essa memória construída sobre meias verdades e códigos falsos", define a realizadora, que entende "Os Gafanhotos" como uma prótese capaz de atenuar o incómodo de que quem se recusa a registar o que realmente se passou em África. Enquanto, nos EUA, vários filmes remoeram o equívoco bélico, Portugal parece ter hesitado em organizar os fantasmas do sótão. E, mesmo na Literatura, vê-se com mais frequência o testemunho masculino de quem esteve em campanhas - João Melo ou António Lobo Antunes, por exemplo.

Em comum, as duas autoras têm a urgência em opor o discurso oficial ao testemunho alternativo. Margarida Cardoso já havia feito isso em "Natal 71", quando confrontou um disco de canções patrióticas, oferecido à tropa por ocasião das festas de fim de ano, com uma cassete gravada secretamente por militares imbuídos de uma revolta silenciosa. Lídia Jorge, por usa vez, já nos habituou a oferecer os focos narrativos dos seus romances a figuras marginais, esquecidas e até sem nome. Claro está porque em "A Costa dos Murmúrios" o ponto de vista é de quem fica, de quem não fez a guerra.

áfricas imaginárias.

Talvez haja ainda, tanto no filme como no livro, um sentimento de Penélope à espera do marido, imagem condensada na cena das mulheres que faziam croché no hall do Stella Maris. Também a mulher de Forza Leal, a bela Helena (Monica Calle), decide trancar-se em casa até ao fim da campanha militar. Sob o verniz de obediência, está o desejo de morte do outro, aquele que a submete a uma disciplina espartana. É quase inevitável ver aqui uma evocação homérica, na qual a beleza está associada ao despoletar de batalhas sangrentas.

As Áfricas imaginárias que cada uma das autoras conserva num museu mental divergem, ao que parece, em termos de iluminação e largura. Lídia Jorge preserva as distâncias descomunais, marcadas pela vegetação densa sobreposta a um cenário amarelo. Tudo é vasto e claro. Como na parte inicial do filme, que transpõe as cores de Moçambique até para os figurinos executados por Sílvia Meireles, sob a direcção artística de Ana Vaz. Só que os olhos infantis de Margarida Cardoso seleccionaram mais os ambientes fechados, com o vapor dos corpos que transpiram, as frestas que não conseguem deter a luz branca, muitas vezes coada pela cortina espessa. E também os móveis de madeira escura, os candeeiros de época e a banheira que, no seu simbolismo líquido, é capaz de dissolver alguns nódulos de tensão entre Evita e Luís.

"Quando escrevi 'A Costa dos Murmúrios queria encerrar um capítulo da nossa história, arrumar uma experiência da minha vida que me tocou profundamente, algo que a Margarida Cardoso está agora a reabrir porque, de facto, é um assunto que não está encerrado. Aqueles documentos que se tentou queimar num bidão mantêm-se vivos neste filme, ainda não se conseguiu apagar a memória do que se passou em África. O que Margarida Cardoso transmite de forma tão coesa não é só a nossa culpa pós-colonial, mas também a questão de outras guerras que se fazem hoje", argumenta Lídia Jorge, que entende que este filme vai além da problemática revolvida nos anos 80. Como se o filme fosse uma continuação do próprio romance, a exemplo do que, na opinião da escritora algarvia, o autor francês Olivier Rolin fez em "Porto Sudão".

"A maneira como recomponho no filme aquele tempo é diferente da do livro, é muito biográfica. Isso pode ser um benefício para nos fazer repensar a questão colonial mais próxima de Olivier Rolin. Compreender que o que vem depois é uma consequência natural das atrocidades do passado. Eu própria tenho a necessidade dessa continuação, porque deparei-me comigo a fazer amigos na África de hoje e, ao mesmo tempo, a presenciar situações impensáveis. Há pessoas a querer lavar os meus pés nos restaurantes, como acontece no livro de Lídia Jorge. É triste porque, quando era criança, não testemunhei nenhuma cena como esta", emociona-se Margarida Cardoso.

Também é a pensar nesse devir - por outras palavras, no que foi feito de África após a descolonização - que a realizadora ponderou cada detalhe da narrativa que pudesse vir a ter conotações raciais. O jornalista mulato que, por medo, investiga o envenenamento dos negros com pouca ousadia é interpretado por um actor branco, Luís Sarmento. "É um homem que faz filhos por toda a parte, não queria que as pessoas vissem o filme e pensassem que Evita traiu o marido branco com um homem mulato mulherengo, seria redutor, um preconceito que queria evitar a todo custo. O filme é uma espécie de um concentrado cuja questão racial, posta ali assim, iria tomar uma proporção gigantesca", explica Margarida.

As personagens, por outro lado, ganharam um semblante mais humano e falível do que na quimera de "Os Gafalhotos". Foi intencional, garante a realizadora, que diz detestar a ideia do 'glamour' no cinema. Por isso, as prostitutas que adornam a fachada do Moulin Rouge "não são limpinhas" e o casal Helena/Forza Leal - um duplo do casal Evita/Luís Alex, um exemplo possível do que ambos seriam no futuro se continuassem submetidos à vivência anódina da guerra - tem falhas físicas como qualquer terráqueo. A cicatriz de Forza Leal, que no romance é explorada com símbolo de heroísmo, também não assume destaque no filme.

"Aquele casal nunca seria para mim aquilo que está no livro, que era no fundo uma representação. Precisava de algo mais carnal, com defeitos. Que se fixasse num homem que até é pequenino (Adriano Luz), que tem barriga e não é nenhum atleta. Algo mais real para um casal. Quando a gente olha para Helena (Mónica Calle), ela enche uma tela, aquela voz quente, acho que era isso que eu queria que Evita sentisse ao olhar para Helena. Uma sedução amedrontada. Nós queremos tocar mas temos medo. É uma mulher grandiosa, mas não é a perfeição da Helena do livro", refere Margarida Cardoso.

Beatriz Batarda, por sua vez, foi escolhida por ter "uma aura" que marca as suas interpretações. Margarida Cardoso soube-o ao assistir "Peixe-Lua" (2000), de José Álvaro Morais. Quando leu o guião, a jovem actriz ficou com a sensação que "não fazia nada no filme", algo que torna a sua interpretação "ainda mais difícil". Porque o que se pede a Evita, quando Eva Lopo remexe as ruínas da história vinte anos depois, é que seja um olhar atento, circunspecto, capaz de recolher de forma crítica cada migalha dos acontecimentos. Para que sejam colados, recompostos e se tornem novamente audíveis. Porque, como escreveu Lídia Jorge, "a pouco e pouco as palavras isolam-se dos objectos que designam, depois das palavras só se desprendem sons, e dos sons restam só os murmúrios, o derradeiro estádio antes do apagamento". É Eva Lopo quem o diz, rindo. "Devolvendo, anulando 'Os Gafanhotos'."

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