2046 Odisseia no Planeta Wong Kar-wai

O homem chegou, como um astronauta que dificilmente consegue fazer-se entender em relação ao que os seus olhos viram no planeta distante, e disse: “No dia de hoje [Maio de 2004, na Croisette], pode-se dizer que o meu filme está acabado”.

Não estava, mas o realizador não mentia. Naquele momento, em Cannes, “2046”, o filme que demorara quatro anos a ser feito, estava “acabado” porque uma data de exibição num festival assim o impunha. Era preciso dar por terminada a obra - que ainda assim chegou em cima da hora, desestabilizando a programação, obrigando à mudança de horários de filmes, criando uma postura crispada, logo à partida, para com um cineasta que, segundo os detractores, se dá ares de lenda com o guarda-roupa, os óculos e métodos “megalómanos”.

Mas o realizador assumiu ali mesmo que, não fosse a data de um festival a marcar um prazo, o filme poderia ser terminado de outra forma (assim aconteceu: basta comparar o que está hoje nas salas com o filme que Cannes viu) ou a tarefa continuar para sempre.

Porque Wong Kar-wai, qual astronauta de um planeta que nunca se revela por inteiro (de que é difícil explicar o segredo, fica sempre uma incógnita), começa os filmes sem argumento e sem prazos, apenas com actores (que têm de se comprometer por anos...) e uma ideia. Que muda, que é desviada para outros percursos. Que é objecto de aproximações várias que iluminam zonas e personagens, obscurecendo outras - e depois pode ser ao contrário.

Na verdade - é a obra que o mostra - não se pode dizer que este cineasta parta para “um” filme. “Um” filme - assim aconteceu com “Days of Being Wild” ou “Chungking Express”, com “Anjos Caídos” ou “Disponível Para Amar” - não é uma entidade distinta, é a imobilização, num momento do tempo, e por contingências várias (às vezes acidentes de produção), de uma mesma corrente de histórias e personagens que está em movimento.

Cada filme é sempre uma variação a partir de uma mesma matéria. E cada filme conta as aventuras e desventuras do realizador no momento da concretização. Hipótese: “2046” conta a história de Wong Kar-wai num momento de crise, a seguir ao sucesso e à perfeição de “Disponível Para Amar”, o filme anterior que se agigantou como um fantasma. “2046” demorou quatro anos a ser feito - tempo de bloqueio do realizador, de procura de uma saída. É um filme de alguém intimidado pelo passado, mas é um filme em que o realizador, como uma vítima entregando-se às delícias de um algoz, lida com as suas dificuldades fazendo a súmula das histórias e personagens (e até diálogos) que já antes imobilizara.

Os fantasmas pegam-se como lapas à memória, mas este realizador diz que, a partir de agora, está pronto para seguir em frente e virar uma página na sua obra.

fantasmagórico. Vamos acreditar, e para já ficamos com a história de um homem que em tempos amou uma mulher, que nunca a esqueceu, e que num hotel de Hong Kong, nos anos 60, esbraceja com a memória dela. Ele chama-se Chow Mo-Wan (Tony Leung) e com a excepção do bigode, e do facto de a actividade predadora se ter sobreposto ao que antes foi um romantismo suave e triste, reconhecemo-lo de outro filme, quando ele estava disponível para amar Maggie Cheung.

Ela partiu, ele ficou, e, anos depois, Chow é mestre em jogos de crueldade, em que o erotismo se veste de negro, com três mulheres que passam pela sua vida e pelo seu quarto: Su Li Zhen (Gong Li, fúnebre e funesta) - o mesmo nome da personagem de Maggie Cheung em “Disponível para Amar” -, Wang Jing Wen (Faye Wong, com os trejeitos de um mundo ensimesmado, como em “Chungking Express") e Bai Ling (Zhang Ziyi, devastadoramente “kamikaze” com as emoções).

Todas elas podem ser estilhaços da imagem perdida para Chow, a de Maggie Cheung, que é uma sombra que paira em “2046” - mas, se o espectador estiver atento, consegue identificar o corpo (uma das diferenças em relação à montagem vista em Cannes é que Cheung, cujo nome aparecia no genérico em letras garrafais, era praticamente invisível nessa versão, era literalmente uma sombra num plano, o que tornava tudo ainda mais fantasmagórico).

Voltando aos fantasmas do homem e à forma como ele os exorciza: Chow escreve, e num conto de ficção científica, que se passa num planeta chamado 2046 (o cenário, virtual, surge mais “trabalhado” nesta versão) ele imagina um espaço-tempo em que nada muda, em que o passado continua presente, em que tudo perdura na suspensão imutável dos andróides.

(Para que tudo se ilumine: Wong Kar-wai assumiu que este herói que quer esquecer, mas que ao fazê-lo não deixa de repisar o passado, é um duplo dele e da sua obra, um eco dos dilemas que se lhe apresenta(ra)m enquanto criador).

“2046” como “sequela” a “Disponível Para Amar"? Não se trata, apenas, de um filme depois de outro. Os projectos tiveram produção simultânea - a parte “futurista” de “2046” foi rodada, em Banguecoque, ao mesmo tempo que “Disponível Para Amar”. Em certos aspectos até foi “2046” - projecto nascido com o regresso de Hong Kong à China, com a promessa das autoridades chinesas de 50 anos sem mudança (contas feitas, dava 2046) - que influenciou certas configurações de “Disponível Para Amar"; por exemplo, o número do quarto onde Tony Leung e Maggie Cheung se encontravam vem do filme que agora se estreia.

Mas é verdade, também, que depois de terminado “Disponível Para Amar”, ao voltar a “2046” Wong Kar-wai mudou o curso do filme (por causa, novamente, do quarto) e a personagem de Tony Leung, inicialmente um carteiro no futuro, começou a dar continuidade à personagem de “Disponível Para Amar”.

O jogo de contágios, portanto, pode ser mútuo e de consequências imprevisíveis. Mas não se pode negar: ao ver “2046” estamos a seguir a vida posterior de uma das personagens de “Disponível para Amar”, Chow. E estamos à espera de ver aparecer a outra, Maggie Cheung. E partimos irremediavelmente “ocupados” pelo filme anterior.

As comparações são inevitáveis, mas é dos obstáculos da memória que se trata; é essa, afinal, a origem, a história e a forma de “2046”, filme que se faz metáfora da sua própria existência; é essa a aventura do espectador por um labirinto que atrai e repele, que se evidencia e se esconde, que se cola e se distancia, “capela imperfeita” que enfrenta o peso da “perfeição” do filme anterior.

Um balanço de ganhos e perdas é sempre redutor em relação à experiência, vibrantemente táctil, como clarões de luz em nichos de escuridão. Mostra-nos um realizador a entrar pelos terrenos do erotismo como nunca o fizera antes (a excepção, “The Hand”, uma curta-metragem para o tríptico “Eros”, é contemporânea de “2046"). Os retratos de mulher que se expõem como numa montra são de uma voluptuosidade carnívora - coisa muito terrena num filme sobre fantasmas. As actrizes são imponentes (Zhang Ziyi é o cume), e há mesmo quem, como Gong Li, apareça de forma completamente nova em relação ao que dela se conhecia - a máscara de porcelana estilhaçou-se mesmo.

E é assim que Josef von Sternberg tem sido o nome mais citado, com os de Proust e de Visconti, quando se fala do filme em que Wong Kar-wai mais corteja a morte - com a languidez de um inebriado mas também com a serenidade de um olhar, totalizante, que se encerra.

“2046” tanto foi condenado por ser “igual” a “Disponível Para Amar” como por ser “diferente”. É nessa ambivalência que se oscila, entre a necessidade de escapar a um reconhecimento ("Disponível Para Amar” fazia-se absolutamente para ser amado) e a procura de novas âncoras ("2046” semeia dificuldades). Em declarações às revistas “Cahiers du Cinéma” e “Les Inrockuptibles”, o cineasta deu conta do dilema:

“Precisei desse tempo todo [quatro anos, o tempo de produção] para perceber que 2046 [o espaço-tempo do filme onde as coisas não mudam] não existe. Foi nesse momento que decidi que a personagem de Tony Leung não queria ir para esse lugar, mas queria fugir dele, o que também é impossível, mas foi isso que desbloqueou o processo de realização ao fazer eco da minha própria situação enquanto cineasta. Tentei fugir de ‘Disponível Para Amar’ e percebi que, afinal, isso não tinha importância. Por isso reuni as referências a todos os meus filmes”.

Ou: “Alguns vão pensar que eu não consigo escapar a ‘Disponível Para Amar’. É preciso ver ‘2046’ como um adeus a esse filme, uma forma de virar de página”.

Ou ainda: “Senti necessidade de filmar histórias situadas nos anos 60 quando percebi, há alguns anos, que os décors desse período estavam em vias de desaparecer. Mas desde que filmo os anos 60 percebi também que o décor contemporâneo está em vias de desaparecimento. É preciso, então, que eu regresse à época contemporânea. Se não, serei como Tony Leung em ‘2046’, sempre atrás de uma coisa que está a desaparecer”.

Wong Kar-wai já anunciou um projecto com Nicole Kidman. Histórico ou contemporâneo? Há coisas que nunca mudam no planeta Wong Kar-wai: diz que ainda não sabe, ignora o que o filme vai contar.

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