Angústia da conspiração

O que singulariza o filme é o modo extremamente perturbante como recolhe o legado do "thriller político" e das "ficções liberais " para operar a dois níveis indissociáveis: uma perturbação máxima porque se põe a hipótese de a própria individualidade já nem existir, de os seres estarem telecomandados, e o olhar desencantado sobre o espectáculo político.

Os Estados Unidos constituem terra fértil para "teorias da conspiração". É demasiado fácil considerar essa proliferação apenas como "irracionalidade", quando algumas das suas premissas são constitutivas da cultura e da democracia americanas: a exaltação da acção individual e a desconfiança dos "poderes" em geral, sejam eles "poderes ocultos" ou um poder central do Estado. A "presunção conspirativa" tanto se concretiza num estado de temor por um genérico "eles", quanto na reafirmação da crença na acção individual que afrontando eventuais "degenerescências" preserva o ideal democrático - tanto é terreno fértil para um isolacionismo conservador como para ficções liberais.

O assassinato de Kennedy era o tradicional exemplo de um evento que suscitou inúmeras "teorias da conspiração", que vieram a ter sua concretização cinematográfica no "JFK" de Oliver Stone. Inevitavelmente, o 11 de Setembro suscitou outra "avalanche conspirativa". "The Manchurian Candidate" é o filme que indirectamente faz a ponte entre uma e outra ordens "conspirativas".

O filme original de 1962, que em Portugal se chamou "O Enviado da Manchúria", realizado por John Frankenheimer, foi o protótipo do "thriller político", um dos géneros preferenciais das ficções liberais dos anos 60: um grupo de soldados norte-americanos tinham de facto sido detidos e sujeitos a uma lavagem ao cérebro pelos chineses comunistas durante a Guerra da Coreia; um deles cuja mãe era mulher de um senador, torna-se político, outro vai-se dando conta da situação e do perigo da ascensão política do primeiro. Mas o filme ficou também célebre porque, sendo a ficção considerada demasiada arriscada, Frank Sinatra, produtor e protagonista, ter solicitado a ajuda de Kennedy para concretizar o projecto, tendo depois mandado retirar o filme na sequência do assassinato em Dallas.

Sem qualquer referência explícita, o filme de Demme é uma claríssima alegoria, mais outra, da situação decorrente interna do 11 de Setembro, nomeadamente das estratégias ofensivas neo-conservadoras, das consequências restritivas da liberdade do "Patriot Act" e da íntima relação da administração Bush-Cheney com grandes corporações como a Halliburton e a Carlyle, aqui fundidas num único centro de conspiração capitalista, extravagantemente designado por "Manchurian Global" - um recurso para manter o título "Manchurian Candidate", a guerra em que a patrulha americana tinha momentaneamente desaparecido e os seus membros sujeitos a uma lavagem do cérebro passando a ser a Golfo, em 1991.

Mas o filme convoca também todo um legado das ficções liberais e do "thriller político", desde "The Best Man" (que salvo erro, esse sim, se chamou em Portugal "O Candidato"), filme que Gore Vidal clama como "seu" e que foi realizado por Franklin J. Schaffner, de onde provém o confronto entre os dois candidatos à nomeação, neste caso vice-presidencial, até "Os Homens do Presidente" de Alan J. Pakula, o filme sobre o Watergate.

Se foi particularmente curioso seguir as diversas alusões ao filme de Demme ao longo do debate político norte-americano dos últimos meses, a circunstância de "The Manchurian Candidate" ter estreado em Portugal afinal logo após as eleições (ele há coincidências!) não deixa de permitir uma apreensão menos imediatamente contingente, uma perspectiva mais genericamente focada na abordagem do poder na América, que aliás terá o seu grande paralelo sim no novo romance de Philip Roth, "The Plot Against America", que supõe uma derrota de Roosevelt nas eleições de 1940 a favor do aviador Charles Lindbergh, personalidade de simpatias pró-nazis - o que teria acontecido se...?

Importa considerar no filme de Demme uma idêntica premissa ficcional - que aliás ainda torna mais obsceno o título português de "O Candidato da Verdade",a "verdade" sendo a categoria mais instável no filme.

Jonathan Demme é um cineasta de nomeada, por tês títulos "Selvagem e Perigosa", "O Silêncio dos Inocentes" e "Philaphelphia" - mas será ele efectivamente conhecido e sobretudo reconhecido? Faço então notar que já lá vão mais de 10 anos desde que um filme seu estreou em Portugal.

É uma antiga inclinação esta: a primeira vez que escrevi foi Demme foi quando da apresentação no Festival de Veneza em 1980 de "Melvin and Howard" - pois bem, creio ser esse caso único de um filme produzido por uma "major" que tendo obtido dois Óscares nunca chegou a ser cá estreado. Mais recentemente, "Beloved", enorme insucesso nos Estados Unidos apesar de ser adaptado do romance da nobelizada Toni Morrison e protagonizado por Oprah Winfrey, máxima vedeta televisiva, chegou a ter cartazes de estreia próxima e depois sumiu-se. E quem terá presente os seus filmes de Demme?

Na reunião em que a Senadora Shaw (uma portentosa Meryl Streep, na sua melhor interpretação em quase uma década) consegue convencer os reticentes correligionários das vantagens da nomeação vice-presidencial do seu filho, há uma importante personagem, que não se manifesta mas se advinha decisiva: "Thank you Mr. Secretary", repete ela. É um ícone, Roger Corman.

Demme foi um dos últimos "rebentos" da "escuderia" do lendário produtor e realizador de "série b", e é importante frisar que ele é alguém que domina os códigos de "géneros" e que desde cedo revelou um considerável sentido do espaço, do espaço fechado sobretudo.

Mesmo se considerarmos os tão diversos "Selvagem e Perigosa", "O Silêncio dos Inocentes" e "Philadelphia" poderemos constatar que todos são "pesadelos" e que ocorre um mecanismo de afrontamento e eventualmente "transferência" ou receio dela. É o caso óbvio em "O Silêncio dos Inocentes", mas recordem-se também os afrontamentos do marido maníaco e do "yuppie" com a mediação da mulher dupla em "Selvagem e Perigosa" ou a magnífica cena de "Philadelphia" em que Denzel Washington fica alucinado e combalido nas suas próprias convicções com o relato de Tom Hanks enquanto se ouve "La mamma morta" - há um processo de angústia, pânico e paranóia característico do "thriller psicológico".

Agora Demme foi de novo buscar Denzel Washington como o ícone da possibilidade de acção individual e de "consciência crítica" em "The Manchurian Candidate". O que singulariza o novo filme é o modo absolutamente brilhante e extremamente perturbante como recolhe o legado do "thriller político" e das "ficções liberais" para operar a dois níveis indissociáveis: o reiterado "thriller psicológico", aqui numa perturbação máxima porque se põe a hipótese de a própria individualidade já nem existir, de os seres estarem telecomandados, e o olhar desencantado sobre o espectáculo político (espectáculo, friso bem) como fabricação de realidades orwellianas. Mesmo aqueles que se interrogam tão angustiadamente poderão ainda considerar-se "inocentes"?

P.S. - Enquanto realizava este filme, Demme concluiu um outro, "The Agronomist", documentário sobre um seu amigo haitiano, jornalista e animador radiofónico, que entretanto foi morto pelos apaniguados de mais outro "libertador" tornado ditador, o padre-presidente Aristide. Haverá alguém (Indie? Doc?) que nos permita conhecê-lo?

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