A dúvida mora ao lado

Depois de uma lua-de-mel de sonho, uma mulher receia que o marido possa ser o responsável pela morte do seu melhor amigo. As desconfianças levam-na a temer pela vida e Alfred Hitchcock envolve-se no retrato de um possível criminoso com um único objectivo: surpreender o espectador.

Alfred Hitchcock tinha um pequeno naipe de actores aos quais confiava o protagonismo dos seus filmes. No cinema, interpretavam, quase sempre, falsos heróis, inocentes acusados de maquinações megalómanas ou meras personificações dos fantasmas daquele que também ficou conhecido como "mestre do suspense". Cary Grant foi um deles, conjugando a postura de galã com as fragilidades de quem acaba sempre enredado em conspirações alheias.

Admirado por Hollywood, o protagonista de "Suspeita/Suspicion" não se sentiu intimidado quando, numa entrevista, um jornalista deixou escapar o desabafo de que "todos gostariam de ser Cary Grant". Perante tal consideração, as primeiras palavras que proferiu foram: "Eu também."

Era a imagem do homem sedutor, que todas as mulheres sonhavam ter a seu lado. Consta que a figura de James Bond, o agente secreto 007, foi pensada segundo as suas características físicas e os trejeitos das personagens mais famosas que interpretou no cinema. Em "Suspeita" (1941), Grant aceitou um desafio arriscado: o de dar vida a Johnnie Aysgarth, um vigarista que, numa estranha combinação de humor, romantismo e atitudes misteriosas, vai confundir a mente da mulher, a doce e desconfiada Lina McLaidlaw.

O desempenho conquistou o público embora o estúdio RKO Pictures tenha forçado Alfred Hitchcock a alterar o final inicialmente previsto. A culpa, mais uma vez, foi do carisma do actor e do receio que os espectadores não se identificassem com a personagem. Mesmo assim, o novo desenlace não desilude porque o realizador de "Janela Indiscreta" é um perito em subtilezas narrativas, bastando um gesto, um olhar ou um curto diálogo para levarem a história numa outra direcção.

Neste "film-noir" mascarado de drama conjugal, o virtuosismo técnico serve de complemento para as bases do "thriller" psicológico que investe no campo das possibilidades. O ponto de partida é o de uma análise profunda sobre aquilo que define e confunde a identidade de um assassino. Um tema complexo à altura das ambições narrativas de um cineasta insatisfeito e, talvez por isso, genial.

O amor pode matar

Em todas as obras de Hitchcock, por detrás de um protagonista em apuros está sempre uma bela e insinuante mulher (de preferência loura). Em "Suspeita", cabe a Joan Fontaine a responsabilidade de suportar todas as consequências emocionais do conceito que dá título ao filme. Lina, de 27 anos, conhece Johnnie Aysgarth numa viagem de comboio. O homem insiste em meter conversa e pede-lhe dinheiro para poder viajar em primeira classe. Contra a vontade dos pais, a jovem apaixona-se e decide aceitar o pedido de casamento de Johnnie.

Depois de uma lua-de-mel de sonho, Lina percebe que o marido não é quem diz ser e que depende financeiramente de empréstimos, apostas e apropriações ilícitas. Além disso, a vaidade leva-o a desdenhar ofertas de emprego e a empenhar-se em negócios condenados à partida. O clima romântico começa a perder força e dá lugar a um jogo denso de suspeitas sobre a identidade e as motivações de Aysgarth. A estranha morte de Beaky Twaithe (Nigel), o melhor amigo da personagem interpretada por Cary Grant, e o interesse nas revelações de uma afável escritora de policiais, Isobel Sedbusk (Auriol Lee), levam Lina a vigiar todos os movimentos do marido e a temer pela vida.

O momento em que Johnnie sobe as escadas com um copo de leite nas mãos (que pode conter veneno) é o sinal claro de que este é um filme de Hitchcock. O desfecho só pode ser surpreendente e há ainda espaço para divertidas alusões ao "crime perfeito" que figuram em grande parte das histórias de detectives.

Baseado no romance "Before the Fact", de Francis Isles, "Suspeita" conta ainda, como é hábito, com uma pequena participação de Hitchcock. O realizador surge, por breves instantes, a meio da história para colocar uma carta na estação de correios da vila onde moram os protagonistas.

O filme venceu um Óscar na categoria de Melhor Actriz pelo desempenho cerebral de Joan Fontaine. Neste labirinto irresistível, o cineasta que conseguiu atribuir um novo significado à palavra "mistério" insiste em fintar o espectador. Com a subtileza e a inspiração do costume.

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