Cheira a Morte

É inegável a coerência do caminho trilhado por João Canijo desde que, em 1998, "Sapatos Pretos" deu início à "segunda fase" de uma obra até então mantida num interregno de oito anos depois dos dois primeiros filmes ("Três Menos Eu", de 1988, e "Filha da Mãe", de 1990).

Mais: não só a coerência se aclara - e com "Noite Escura", depois de "Ganhar a Vida" e "Sapatos Pretos", ela está à vista -, como Canijo vai apurando o que quer dizer e mostrar, e a maneira de o fazer. É o melhor filme que Canijo já fez e, para já, a mais concentrada e eficaz exposição daquilo que subjaz (estilística e tematicamente) a esta "segunda fase", do que lhe define a coerência e permite que se aplique essa expressão, "segunda fase".

Simplificando: se desde "Sapatos Pretos" o cinema de Canijo procura algo de muito específico, "Noite Escura" é o ponto em que mais perto ele fica de a encontrar.

Também simplificadamente, dir-se-ia que essa "coisa de muito específico" se pretende com a vontade de chegar a um retrato do "Portugal profundo", rural, interior, "inestético", filmado "in loco" ou a partir das suas emanações. Mas há algo mais. Não apenas chegar ao retrato, mas partir dele; e partir dele usando-o como matéria para um desenho narrativo que o transcende.

Canijo construiu o argumento com base numa tragédia de Eurípedes. Linha narrativa do filme: um pai (Fernando Luís), dono de uma casa de alterne, combinou vender a filha mais nova (Cleia Almeida) como prostituta a um grupo de mafiosos russos para saldar as dívidas e a vida; mas na noite em que a transacção se vai consumar os acontecimentos precipitam-se, pela acção da filha mais velha (irreconhecível Beatriz Batarda) e da mulher (Rita Blanco, de cabelo oxigenado). Mas o desafio, como é óbvio, não era apenas fazer uma tragédia, era fazer uma tragédia a partir destas personagens e ambientes, preservando a sordidez mas conseguindo arrancar-lhes um recorte que ultrapassa o imediatismo do pressuposto de base: não se trata de encontrar uma galeria de tipos execráveis, mas de lhes encontrar uma profundidade de intérprete de tragédia. Daí que, se este é o ponto em que Canijo mais se aproxima desse objectivo, isso aconteça porque "Noite Escura" talvez seja também o filme em que as personagens mais se encerram dentro da sua tipificação, resistindo a qualquer "decomposição" em termos morais e rechaçando qualquer hipótese de empatia. É como se a linha delimitadora entre o palco e o público estivesse lá cavada: eles vivem uma representação que não precisa nem do espectador nem da sua "simpatia".

O paradoxo disto tudo é que Canijo nunca filmou nada de tão "envolvente". Na verdadeira acepção da palavra: "Noite Escura" é um "filme de décor", impressionante reprodução de uma casa de alterne que, mais uma vez, é outra coisa: um labirinto, artificioso e estilizado, uma "gruta" onde estão encerrados e são jogados uns contra os outros. Não se sai dali porque aquela casa é o último degrau antes do abismo - e os que saiem saiem para se afundar. Cheira a morte desde o princípio: a reconstituição da casa de alterne é "realista", pelo menos no sentido em que é convincente, mas a sua função é totalmente artificiosa, e é se calhar a personagem mais "viva" e dominadora de todas.

Para esta envolvência e para este domínio do espaço da casa é fundamental o trabalho de câmara e, sobretudo, o do som: é pela circulação dos diálogos, pela sobreposição do que dizem as personagens na sala ao lado e do que dizem as que estão em grande plano que se sugere a "obscenidade" do espaço, como se esta fosse condensada num "rumor" que se abate sobre todos, e que prende todos uns aos outros - é um som "viscoso". Mas o visco é o principal ingrediente do filme.

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