Noite escuríssima

O filme anterior de João Canijo,"Noite Escura", tinha colocado afasquia muito alta: não só seadaptava, com enorme rigor,"Ifigénia em Áulis", de Eurípedes(com reminiscências de"Agamémnon", a primeira jornadada "Oresteia" de Ésquilo), a umarealidade portuguesacontemporânea, como se atingia ospíncaros da acção trágica numasufocante construção de sucessivasperipécias servidas por um naipe deactores em que pontificava aversatilidade de Beatriz Batarda.

"Mal Nascida" prossegue naexploração moderna da trilogia deEurípedes, embora debruçando-sesobre a tragédia final, "Electra", esaltando (eventualmente por razõesde orçamento) o tomo intermédio. A"actualização" permite uma imensaliberdade de representação,optando Canijo, desta vez, peloambiente atabafante de uma aldeiados confins de Trás-os-Montes.Porque o confronto entre aClitmenestra e a Electra modernasconstitui o cerne incontornável daacção trágica, acentuam-se ascaracterísticas de um "filme demulheres", sobre os sentimentosexacerbados da maternidade e docomplexo universal da relação coma perda obsessiva do pai, umAgamémnon ausente, reduzidodesde a primeira sequência a umapobre campa de cemitério deprovíncia.

Por isso, a Fernando Luís, o únicoactor remanescente de "NoiteEscura", agora encarnando a figuracorrespondente a Egisto, amante damãe e culpado pela morte do pai,tem apenas um papel coadjuvante,ofuscado pela grandeza das duaspersonagens femininas: tantoAnabela Moreira, fabulosa decontenção, como Márcia Breia,actriz de inesgotáveis recursos,espelhando todo o desespero doincesto e da incapacidade de superara perda da outra filha, Fátima,carregam, sozinhas, o peso datensão trágica. A frágil personagemde Augusto (Gonçalo Waddingtonem registo de espectador, mais doque de interveniente), duplo actualde um Orestes vingador, aparecesecundarizada pela genialidade dasduas "megeras", entre as quais sejoga tudo.

Pode afirmar-se que "Mal Nascida"pouco acrescenta a "Noite Escura",parecendo, por vezes, um esboçomenos elaborado do filme anterior,mas não se pode negar uma extremacoerência e uma caracterizaçãorigorosa de atmosferas, comidênticas vertentes claustrofóbicas euma negríssima leitura de umquotidiano "sujo" e triste que sesocorre, em simultâneo, de umperturbante realismo e de umexcesso teatralizado da acção.

Os porcos, as pocilgas, o climaagreste do Nordeste transmontanofornecem adequado pano de fundo àloucura e à vingança. A morte docasal assume-se, pois, como odesejado epílogo trágico, filmadocom uma urgência e uma economianarrativa que atestam a inteligênciado universo que Canijo,definitivamente um dos maioresrealizadores portugueses, retratacom invulgar força.

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