Fácil de amar

Como género, o "biopic" - diminutivo para "biographic picture" - conheceu em Hollywood diferentes fases, com um apreciável capital de prestígio nos anos 30, quando a Warner Bros. conseguiu o óscar de melhor filme com "The Life of Emile Zola" (1937), tendo Paul Muni no protagonista.

Aliás o actor já ganhara o óscar de melhor actor em "A Vida de Pasteur" (1936) e viria a reincidir como Juarez, em "A Derrocada de um Império" (1939). Por outro lado, uma estrela como Spencer Tracy oscilava, então, entre explorador e inventor, de "Stanley and Livingstone" (1939) a "A Vida de Edison" (1940), não esquecendo o retrato do padre Flanagan, que lhe dera o óscar em "Homens de Amanhã" (1938).

Na década de 40, o apelo do género cruza-se com o crescendo do filme musical e abundam as biografias de compositores e de outras figuras do entretenimento: para a história ficaram os disparates melodramáticos de "Chopin Imortal" (1944) com Cornel Wilde, a dignidade pomposa de "Song of Love" (1947), com Paul Henreid em Schumann, Katharine Hepburn em Clara Schumann e Robert Walker em Brahms, ambos grandes produções da MGM, ou, no outro extremo, o "kitsch" pobre e delirante de "A Canção de Scheherazade" (1947), veículo da Universal para a inefável Yvonne de Carlo, com Jean-Pierre Aumont a fazer de Rimsky-Korsakov.

Mas não só de compositores clássicos vivia o "biopic" musical: em tempo de evasão e patriotismo, Hollywood "descobria" e glorificava os seus "entertainers" e "songwriters" mais paradigmáticos, aproveitando para ressuscitar na banda sonora cantigas de sucesso. Mesmo uma breve e selectiva lista dá conta da concentração, num período que vai do início da guerra até ao final dos anos 40: Irving Berlin (com o rosto de Tyrone Power), em "Sinfonias Modernas/Alexander Ragtime's Band" (1938); George M. Cohan, dando o óscar a James Cagney, em "Canção Triunfal/Yankee Doodle Dandy" (1942); Cole Porter sob a forma de Cary Grant em "Fantasia Dourada/Night and Day" (1945); George Gershwin (Robert Alda), em "Rapsódia Azul" (1945); Al Jolson em "Romance Imortal /The Jolson Story" (1946) com Larry Parks e a voz do cantor; Jerome Kern (com Robert Walker que no mesmo ano fora Brahms), em "Até as Nuvens Passarem" (1947); ou a parceria Rodgers e Hart (Tom Drake e Mickey Rooney), em "Os Reis do Espectáculo /Words and Music" (1948).

Esta introdução histórica torna-se indispensável, na medida em que o "biopic" musical, sem nunca ter desaparecido por completo (nos anos 70, por exemplo, Ken Russell revisita o imaginário clássico, com extravagantes biografias de Mahler, Listz ou Tchaikovsky), deixou de possuir o mesmo peso. E este "De-Lovely", de Irwin Winkler, funciona como uma "revisionista" biografia pós-moderna de Cole Porter. Até o título, aproveitando uma famosa canção do compositor e letrista, "It's de-lovely", aponta para essa revisão da matéria biográfica: como dissemos, a anterior tentativa para romancear a vida de Porter centrava-se numa estrela "impoluta" como Gary Grant (apesar de muitas possíveis ambiguidades da sua vida sexual desveladas, mais tarde, no livro "Hollywood, Babylon") e branqueava as evidências da homossexualidade de Porter. Era um "biopic", em que o embelezamento ("lovely") da vida particular e do amor por Linda, a mulher, excluía quaisquer "manchas". Esta nova visão opta pelo conceito de "desembelezamento ("de-lovely"), mostrando os escolhos do casamento, as chantagens e os amantes ocasionais, sem prescindir de uma colagem das grandes canções à musa inspiradora, no que permanece fiel à lógica clássica: as canções ao serviço da ficção, como motor da acção e dos amores. A menção a "Fantasia Dourada" e o diálogo (qualquer coisa como, se passámos por esta mistificação, escaparemos a qualquer problema) que se lhe refere tem a carga de uma autoreferencialidade distanciadora.

revisão da matéria biográfica.

O esquema narrativo também segue uma fórmula reconhecível: Porter (excelente composição de Kevin Kline) aparece envelhecido, na companhia de um anjo "encenador" (Jonathan Price, num registo tragicómico), e assiste a uma revisão da sua vida e obra. E vêm-nos à memória ecos do "biopic" clássico: a recomposição da vida, ilustrada por canções, dadas a nomes conhecidos do espectáculo, numa espécie de revista, que misturava ensaios de "shows" e excertos de estreias. Em "Fantasia Dourada" tínhamos direito, por exemplo, a uma rara prestação cinematográfica de Mary Martin, a criadora de "My Heart Belongs to Daddy"; em "De-Lovely" somos brindados com estrelas do presente, como Elvis Costello, Robbie Williams, Alanis Morrisette, Diana Krall ou Cheryl Crow, muito próximo da lógica dos álbuns de homenagem a grandes compositores que proliferam no mercado. Algumas canções aparecem no filme como parte dos musicais que integraram (presenças fundamentais de "Gay Divorce" ou "Kiss Me Kate"), outras ao serviço da narrativa: "True Love" (muito mais tarde, nos anos 50, integrado em "Alta Sociedade"), no encontro com Linda (belíssima Ashley Judd), ou "Love for Sale" em óbvio encaixe numa das cenas do clube "gay", que Porter frequenta. "In the Still of the Night" surge como início e fim, apesar das aparentes recusas de começar com uma balada triste, "Blow, Gabriel, Blow" serve às mil maravilhas, em falsa coda, para "explicar" a figura angélica que conduz o "flashback".

Aliás, este subterfúgio lembra também uma das fantasias maiores do musical MGM, "Ziegfeld Follies" (1946), em que o empresário "morto" assistia, a partir do céu, a uma montagem dos seus sucessos, em números de grande espectáculo. Só que o tom algo lúgubre do início e do final de "De-Lovely" ecoa "All That Jazz" (1979), filme semi-autobigráfico de antecipação da morte que entra na coreografia como personagem central, em que Bob Fosse reformula e questiona o género.

"De-Lovely" apresenta-se, assim, como cruzamento de tensões de diferentes origens: por um lado quer revivificar o musical clássico, valorizando o riquíssimo património de Porter (os fãs notam a ausência de "Miss Otis Regrets" ou "My Heart Belongs to Daddy", mas o desfile é impressionante de variedade); por outro, introduz-se uma "seriedade" de tratamento, que passa pelo cuidado de repor a "verdade" sobre a vida. O resultado é misto: atenua-se a força do espectáculo (do "vale tudo" com que poderíamos traduzir o famoso "Anything Goes"), mas constrói-se uma forte rede dramática a modernizar o género.

Dirão os cínicos que o sucesso de "Chicago" estará na origem deste regresso ao musical. No entanto, "De-Lovely" tem outros antecedentes (e, por isso, insistimos em falar tanto do "biopic"), triunfando das maiores dificuldades que a si próprio se impõe: não respeitar nem forçar demasiado a cronologia das canções, submeter os números a uma linha condutora, não glamorizar em excesso as "fraquezas" do compositor (homens e álcool), apresentando-o como coxo e amputado e não como na versão fílmica de "Kiss Me Kate", em que Hollywood ignorava a doença. Um bom musical, em tempo de "vacas magras", um bom "biopic", em tempo de novos delírios, um filme "fácil de se gostar de", ou seja, como na canção, "Easy to Love".

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