A Ordem do Segredo

Perguntei(-me) uma vez: poderia escrever "A evidência é a marca do génio de Jacques Rivette"? Era um princípio de jogo. "A evidência é a marca do génio de Howard Hawks" foi uma das célebres hipérboles críticas dos da "política dos autores" dos "Cahiers du Cinéma" dos anos 50, o autor sendo Jacques Rivette, cineasta dos que mais profundamente admiro e um daqueles em que mais se me afigura uma "marca de génio", que, contudo, não é certamente manifesta em "evidências".

"Apercebemo-nos que o génio mozartiano, por imenso que seja, nem sempre se afirma com a força da evidência que desejaríamos". Isto escreveu Eric Rohmer em "De Mozart en Beethoven - Essai sur la notion de profondeur em musique" (Actes Sud, 1998). Sim Rohmer, outro dos críticos dos "Cahiers" dos anos 50 e cineasta. Não é caso para surpresa total - os que conhecem Rohmer, não apenas os seus filmes mas também os escritos, reconhecerão logo a recorrência da "noção de profundidade". E, já agora, para concluir a "peripécia" acrescento que nesse ensaio Rohmer prossegue uma reflexão sobre o classicismo e a sua herança, na obstinação do apreço fidelizado por certos autores - como uma certa "política", ainda.

Direi então que estou longe de ser de "fidelidades" rohmerianas. Eis, a meu ver, um caso de "génio intermitente". Tanto quanto a sua inteligência me seduz, a banalidade do que ele supõe ser "as jovens" afigura-se-me frequentemente aflitiva. Será um jogo de "evidência" e "profundidade". Tanto ele me surge frustre quando estritamente se cola à "evidência" das suas heroínas, tanto mais é genial quando nos faz descobrir num jogo em "profundidade" em que justamente a "evidência" de um factor decisivo nos foi subtraída; "A Marquesa d'O", por exemplo - como engravidou ela, como foi possível o facto inaudito?

Com um ou outro filme ocasional pelo meio, Rohmer é um autor de "colecções", "Os Contos Morais", "As Comédias e Provérbios", "As Quatro Estações"; a estratégia do jogo elucida-se no conjunto. Nenhuma estratégia foi anunciada para "A Inglesa e o Duque" e "Agente Triplo". Saltarão aos olhos as diferenças dos dois filmes, que contudo ambos lidam directamente com a História. E, nada inocentemente, com a Revolução Francesa e contra-revolucionários russos. Rohmer, um notório "reaccionário" (é uma caracterização mais que óbvia), faz as suas contas com a História, num díptico da "inglesa e o russo", ambos em França. Sendo interessante rever o primeiro (já editado em DVD pela Atalanta) agora que é conhecido o segundo, ocorre mesmo o "clic" de um "encontro": é que Serge Renko, o espantoso protagonista "desconhecido" de "Triplo Agente", era voz que já se tinha ouvido (é pela voz que o podemos reconhecer), esse Vergniaud que no Comité do Terror dizia não ser caso para acusar Miss Grace Elliot - e os acasos de Rohmer são estrategicamente calculados!

"Agente" é alguém que tem uma parte "secreta", que se pretende subtraída a um regime de "evidências". O que torna extraordinariamente problemático o jogo de Fiodor é o modo como pretende dissimular, paradoxalmente exibindo-se - "por vezes é mais hábil dizer a verdade que mentir porque então não acreditavam". Mas essa "verdade" não pode deixar de ser um cálculo tanto mais difícil numa zona de sombra - "de facto, nesta profissão que se chama eufemisticamente de informações, para não dizer espionagem, é muito difícil distinguir o que é e não é da ordem do segredo". Quanto mais Fiodor sobe na parada do jogo, maior é a sinuosidade.

Para quem trabalha ele afinal? Sabê-lo-á o próprio, enredado que está? Daí também a estupefacção da sua mulher: ele diz aos outros o que a ela não diz - "com os outros não tenho nenhum escrúpulo em mentir, contigo sim"; mas mentirá aos outros ou ocultar-se-á à mulher? A vida privada de Fiodor e Arsinoé, esse reduto íntimo, não resiste ao regime geral da dissimulação, à volúpia dos discursos em que ele se enreda. É todo o contrário das "evidências". O chefe dos russos brancos de que Fiodor é o lugar-tenente desaparece; como foi possível esse facto inaudito que levará à perdição dos próprios Fiodor e Arsinoé? A uma primeira visão do filme talvez se fique apenas surpreendido por um processo insólito: ele deixa a mulher na modista, a imagem fecha-se em íris, o negro indo cobrindo o écran até ao centro; depois, abertura também em íris, e ele vem buscá-la - só mais tarde poderemos deduzir que o inaudito ocorreu quando a imagem se fez obscura.

"Agente Triplo" não é um "filme de espionagem", é um admirável filme político, sobre a política, sobre o modo como "agentes" dela se deixam levar na crença vertiginosa de um poder que algemam e julgam deter, e em que afinal estão enredados.

O russo já teria "encontrado" a "inglesa", mas ele, o contra-revolucionário, é afinal parente do "duque", um e outro pensando que podiam conduzir os acontecimentos. "Julgaste poder conduzir a Revolução, mas é ela que vos conduz para onde nunca pensaste", diz Grace ao Duque de Orleães; o temor de Arsinoé é que algo de semelhante, um processo de que se perdeu o controle, suceda a Fiodor!

É sobre as Revoluções que Rohmer manifesta um olhar profundamente céptico. Mas diferentemente do folhetim da desgraçadinha do Tide sob a Revolução Francesa ("hélas"!), "Agente Triplo" é um filme de complexidade deslumbrante, justamente porque a regra do jogo nunca é desvendada. E é um filme a que se volta, nas marcas de uma inteligência tanto mais perturbante porque admiravelmente subtil.

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