Magia continua em negro

Uma série de filmes como a de Harry Potter levanta problemas particulares: primeiro trata-se da adaptação regular de um "best-seller" da literatura juvenil recente; segundo, cada tomo cinematográfico não possui com o anterior uma relação de sequela, apostando numa relativa autonomia que o sucesso do original literário garante; terceiro, não existe a necessidade do reconhecimento de tom ou de personagens-tipo, porque tal está já assegurado pela matriz ganhadora de J. K. Rowling.

Estas considerações revelam-se importantes para o último (já estão em fase de pré-produção mais duas "sequelas", previstas para 2005 e 2008) episódio das aventuras do jovem bruxo com a estrela gravada na testa: tanto "Harry Potter e a Pedra Filosofal" (2001) como "Harry Potter e a Câmara dos Segredos" (2002) apareciam com a assinatura de Chris Columbus, o mentor da série "Sozinho em Casa", o que garantia um pendor infantil, mais ligeiro e anedótico; ora "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" implica mudança de nome, aparecendo sob a égide do mexicano Alfonso Cuarón, capaz do pior (uma inominável versão de "Great Expectations", de Dickens, em Hollywood em 1998) como do melhor - o interessante "E a Tua Mãe Também" (2001), realizado no seu México natal. Do anedotário do filme consta a informação de que Cuarón nunca teria lido nenhum dos livros de Potter, o que pode propiciar curiosas ilações de que se trata de um olhar novo e "desinformado" sobre a saga dos bruxinhos de Hogwarts.

O resultado desta alteração revela um olhar bem mais negro e soturno sobre a personagem e seus co-adjuvantes, acentuando o carácter selvagem e inóspito de Hogwarts e dos bosques que o rodeiam e, sobretudo, marcando diferenças no crescimento dos três miúdos: Harry escapa à tutela dos tios numa primeira cena de divertida transgressão, Ron ganha maior densidade como personagem, Hermione perde o ar pespineta e tagarela, falando menos e agindo mais.

Continua a haver grandes momentos de imaginação visual, com a fuga no autocarro e a figuração dos Dementors e do extraordinário animal mítico, o Hipogrifo. No entanto, somos poupados a pormenores fantasmagóricos e a dispersão de episódios avulsos (não há longos jogos daquele desporto estranho com "bolas" imaginárias, nem longos passeios pelos corredores asombrados), com uma concentração na história central, a fuga da prisão de Sirius Black (impressionante Gary Oldman, o Drácula de Coppola), acusado de ter traído os pais do herói, entregando-o a Voldemort. A "intriga policial" acentua-se, o perigo iminente ganha foros de grande tensão, a galeria de grandes figuras do teatro inglês alarga-se: mantém-se a preciosa ambiguidade de Alan Rickman; substitui-se o defunto Richard Harris por Michael Gambon, num Dumbledore mais críptico; acrescentam-se Emma Thompson, numa cómica professora de Adivinhação, Julie Christie num "cameo" e Dawn French, de televisiva memória na mais hilariante das personagens. Aparece um novo professor, contrapartida mais forte ao gabarola de Kenneth Brannagh, no filme anterior, de Defesa Contra as Artes Negras, entregue à inquietante figura de David Thewlis, vindo dos "realismos à la Mike Leigh".

No cômputo geral, menos magia e maior sedimentação de uma possível verosimilhança, uma bem-vinda aproximação a um imaginário mais adulto. Fica a dúvida: e daqui para a frente, que tom adoptar, para onde ir, sem defraudar os fãs?

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