Retrato de uma senhora

Em meados do século XIX, uma mulher desembarca com a filha numa praia cinzenta e longínqua no princípio do mundo. Estranha numa terra estranha, Ada (Holly Hunter) abandonou a Escócia natal para viajar até à floresta neozelandesa, ao encontro de um marido que não conhece e com o qual o pai a casou por procuração. Muda desde os seis anos, toda a relação com o mundo à sua volta passa por duas valiosas "muletas", o inseparável piano e Flora (Anna Paquin), a filha, pois é através delas que exprime os seus sentimentos.

Uma relação, quase umbilical, que, em parte, é posta em causa quando o marido de Ada, Stewart (Sam Neill), decide que o piano é demasiado pesado para ser transportado com a restante mobília trazida da Escócia. Incapaz de suportar a separação, Ada consegue convencer o vizinho, Baines (Harvey Keitel), a levá-la até à praia onde o instrumento foi abandonado. Ada e a sua música fascinam o colono analfabeto, que decide trocar com Stewart uma das suas terras pelo piano.

Quando Ada, resignada, o visita para uma aula de música, percebe que Baines não quer aprender a tocar. Alvo de uma chantagem erótica - a recuperação do piano através de favores sexuais -, descobre que de uma situação de sujeição sacrificial pode ainda assim nascer o amor...

Essa descoberta e todo o percurso, anterior e posterior à mesma, de uma mulher forte e crispada, de rosto fechado, funcionam como o eixo decisivo de "O Piano" (1993). Um filme que consagrou definitivamente a neozelandesa Jane Campion no panorama cinematográfico internacional. E para isso, muito contribuíram os vários prémios alcançados, entre os quais três Óscares - melhor argumento (escrito por Campion), melhor actriz (Hunter) e melhor actriz secundária (Paquin, na sua estreia no cinema) - e, acima de tudo, a Palma de Ouro de Cannes ("ex aequo" com "Adeus, Minha Concubina", de Chen Kaige), um feito até então inédito para uma mulher.

Anos antes, a realizadora (licenciada em Antropologia e com um diploma em Belas Artes) iniciara a carreira com uma série de curtas-metragens bem recebidas pela crítica. Atenção especial que lhe foi também prestada quando se estreou nas longas, com "Sweetie" (1989), Grande Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza. De imediato, choveram comparações entre a neozelandesa e David Lynch, pela confluência do que seriam marcas comuns, do hiper-realismo ao gosto pela diferença e pelo bizarro, passando ainda pela diluição da fronteira entre beleza e fealdade ("Gosto da variedade nos humanos. E gosto também dos extremos... a bela e o monstro. Há qualquer coisa de horrível na aceptização da humanidade a que assistimos em muitos filmes", afirmou, em tempos, Campion).

Trair para salvar

No entanto, a obra seguinte de Campion, "Um Anjo à Minha Mesa" (1991), permitiu separar as águas e contrapor à abstracção surreal própria de Lynch a apetência da cineasta pela narrativa. De qualquer forma, nada faria prever que o próximo projecto de Campion resultasse em "O Piano" (ou se calhar até sim, pelo menos para os mais informados, ou seja, quem soubesse que já antes de "Sweetie" a realizadora planeara esse filme, desistindo apenas por não se considerar ainda preparada). Porquê? Porque é a sombra do romanesco gótico ("O Monte dos Ventavais" é uma influência assumida) que paira sobre tudo, enviando, mais do que nunca (até aí) no cinema da realizadora, "O Piano" (que pode agora ser visto como aprendizagem para o seguinte "Retrato de uma Senhora", adaptação de Henry James) para terrenos "narrativos" e "literários".

Por consequência, também a câmara de Campion parece como que transfigurada, abandonando em grande parte os enquadramentos oblíquos por uma respiração mais "clássica". Mas apesar desta "normalização", encontramos em "O Piano" muitas das marcas da cineasta. Desde logo, a caracterização da protagonista, típica heroína "campioniana": Ada (magnífica Holly Hunter, nos antípodas da sua habitual "persona") surge definida sob o signo da estranheza, com a mudez como carimbo da sua singularidade, remetendo para a fealdade de Sweetie e os cabelos ruivos da escritora Janet Frame ("Um Anjo...").

Por outro lado, mais uma vez são puxadas para primeiro plano as relações familiares conturbadas, feitas de laços ao mesmo tempo especiais e nocivos. É a denúncia, por Flora, do adultério de Ada - motivada pela inveja da criança, que vê na ligação entre Ada e Baines uma proximidade rival da que une mãe e filha - que leva Stewart a cortar, como punição, um dedo à mulher. Uma traição que acaba por se revelar libertadora, na medida em que a essa amputação, literal, se segue outra, simbólica e ainda mais decisiva: Ada separa-se do piano, atirando-o ao mar, cortando definitivamente as amarras que a impediam de viver em pleno, acto de vontade e recomeço.

História de um insólito triângulo amoroso - à mulher, marido e amante há que juntar ainda o piano, extensão de um corpo, o de Ada - e do poder do desejo, por "O Piano" passa um sopro selvagem, com a paisagem de uma floresta húmida e lamacenta a ganhar fortes contornos eróticos e crianças a servirem-se de troncos de árvores para simularem o acto sexual. Um filme cuja delicada elegância se aproxima de uma beleza fulgurante, esquivando-se de forma admirável às armadilhas do decorativismo estéril.

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