Fumo de Cinema

Alguém disse que uma rapariga, um rapaz e uma câmara, tanto bastava para que pudesse haver cinema. Não há nenhuma história de amor nas 11 vinhetas que compõem na sua forma final "Coffee and Cigarettes", mas essa rememoração de quanto um mínimo de meios pode ser fértil caso haja desejo de cinema é um dos dados fulcrais do filme. Só por si, tanto deveria bastar para fazer dele um objecto de consideração.

Nenhuma construção teórica deve denegar o vínculo fundamental que se estabelece na sala escura entre um filme e o seu espectador, mas essa relação também não se pode restringir às contabilidades do mais e do menos ou às indicações de estrelas. Não direi assim que na sua forma final "Coffe and Cigarettes" se me afigure um filme especialmente exaltante, mas já acho lamentável que a constatação dos limites do seu dispositivo conceptual faça esquecer as questões de cinema que coloca.

Está visto - já por duas vezes escrevi "na sua forma final". Ora bem, a elucidação não é estritamente informativa, mas diz também respeito ao modo como se foi constituindo esse tal vínculo fundamental na sala escura. O primeiro segmento, o de Begnini e Steven Wright, surgiu como um apêndice a "Down by Law"; salvo erro, essa longa-metragem vimo-la em Cannes em 1986, e a curta em Berlim no ano seguinte. O segundo, o de Memphis, com Steve Buscemi e os irmãos de Spike Lee, veio também como apêndice, desta vez a "Mistery Train". Em 1993, em Cannes, "Coffee and Cigarettes (Somewhere in California)", com Tom Waits e Iggy Pop, já apareceu isolado; vimos o conjunto das curtas-metragens em concurso logo na primeira sessão do júri e o entusiasmo tomou conta de alguns de nós, se calhar os mais "aditos", mas certamente não só - obteve a Palma de Ouro por unanimidade. Entretanto, e já agora, Jarmusch lá apareceu em "Blue in the Face", de Paul Auster e Wayne Wang, "companion piece" de um outro filme designado "Smoke" (e como se pode lamentar não haver possibilidades, às meia-noite que fosse, de agora repor esses dois filmes para a fumarada ser ainda maior!).

Leva esta rememoração aliás a outra: originalmente também "Stranger than Paradise" era uma curta-metragem de 30 minutos, feita com as sobras de película de "O Estado das Coisas" de Wenders. Essa acabou por ser a primeira das três partes que compõe na sua forma final o filme do mesmo título. Não é difícil de deduzir que Jarmusch ficou também preso a uma forma tripartida, pois essa prolongou-se em "Down by Law" e, de modo mais hábil e complexo, em "Mistery Train"; mas é igualmente forçoso reconhecer que a sua remissão para a colecção de segmentos teve um resultado assaz decepcionante em "Noite na Terra".

Porque importa também a rememoração? Não apenas pela contextualização, mas porque dela se pode inferir um aspecto crucial: Jarmusch é um daqueles (raros) autores que efectivamente têm uma moral do cinema. E não sei como se pode escamotear esse dado crucial - e também aquele outro de ser portador duma tradição "independente" do cinema americano que não se confunde com as margens bem mais integradas do sistema que a Miramax e Sundance representam. É em estrita articulação com esse espírito que se funda um projecto como "Coffe and Cigarettes". Mas será possível que nem ocorra o que supõe alguém ter vindo a realizar na América desde 1986, nos anos ainda do agora santificado Reagan, um projecto de título "Coffe and Cigarettes"? Do que supõe só a invocação de "Cigarettes"? Ou, de outro modo, que este é, cinematograficamente e culturalmente, um projecto de diferença? Mas será possível?

As razões destas "inclinações" são evidentes. Para além do meu próprio consumo de café e cigarros, há uma história pessoal com o filme e sobretudo uma empatia com o projecto. Não deduzo daí nenhuma apologia. Seguramente que a omnipresença do dispositivo conceptual cansa. Mas curiosamente também sucede que quando Jarmusch se afasta dele, nos dois segmentos obviamente aparentados que são "Cousins" (com Cate Blanchett e a prima dela) e "Cousins?" (com Alfredo Molina e Steve Coogan), se por um lado se sente um outro vigor, não apenas no conjunto de "Coffee and Cigarettes" mas mesmo atendendo também aos sinais de cansaço patentes nas últimas duas longas-metragens, "Dead Man" e "Ghost Dog", por outro poderemos ficar desorientados e perguntarmo-nos: "Mas afinal que filme é este?".

Só que essa pode ser precisamente a questão interessante: "Mas afinal que filme é este?". Estaremos assim tão condicionados pelo programa de visão de longas-metragens de 90m ou 2h que logo rejeitemos esta diferença? "Coffee and Cigarettes" toma como pretextos a sociabilidade de hábitos de consumo para tornar sua matéria os modos verbais de comunicação - e prolonga-se na questionação dos modos de consumo cinematográfico. Pois, será como a "juke box", outro elemento recorrente; o que se nos apresenta agora é a série completa de que poderemos também vir a fazer as opções; eu já sei bem - de "Somewhere in California" e a admirável elegia final ao tempo passado com ex-ícones do "underground" nova-iorquino Bill Rice e Taylor Meade ouvindo "Ich bin der Welt abhanden gekommen/Perdi-me do Mundo" de Mahler, desses não me hei-de apartar. Justamente, opções, acto do espectador na sua relação com o filme e na questionação dos consumos. Não creio que seja coisa de somenos.

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