A América na idade do gelo

Que mosca terá mordido Roland Emmerich, o realizador alemão de filmes sem alma sobre a hiper-potência americana (segundo a célebre definição dos EUA feita por um antigo ministro francês), como "O Dia da Independência" ou "The Patriot"?

Em comparação, "O Dia Depois de Amanhã", que estreia esta semana no mundo inteiro, é quase... subversivo. Pelo menos para Hollywood. E até para a América profunda. Imagine-se só: estamos numa nova era glaciar, provocada pelos ultrajes que fazemos ao meio ambiente. Catástrofes naturais, umas atrás das outras, devastam os EUA - e a Europa e a Ásia, mas isso é acessório no filme. Depressa, os americanos sobreviventes compreendem que só lhes resta uma solução para não morrerem: emigrar para o México...

Milhares de "yankees" atravessam aquela fronteira ao longo do Rio Grande ferozmente patrulhada, no mundo real, do lado americano, na sua caça frenética aos imigrantes "latinos" clandestinos. No filme, os campos de refugiados alastram no deserto mexicano, mas o presidente do México não perde o norte: ordena o fecho da fronteira, até que o seu homólogo americano anule a dívida do México.

Para a imprensa mundial, convidada a Paris para uma projecção em ante-estreia do filme e para encontrar a equipa que o fez, esta cena é absolutamente jubilatória. E promete momentos de divertimento nas salas de cinema fora dos EUA. Mas, e nos EUA?

"Não posso dizer que tenho medo da reacção do público americano, mas estou curioso de ver como vão reagir, isso sim", confessa Roland Emmerich ao Y num hotel de luxo parisiense. Na realidade, para o realizador, se há um lado subversivo em "O Dia Depois de Amanhã", é o final doce-amargo, isento de uma reviravolta espectacular que respeitasse a praxe do "happy end".

"É uma história sobre uma catástrofe natural climática. Pode-se rebentar um meteoro com uma bomba atómica e salvar a humanidade, para satisfazer os espectadores. Mas não se pode ir metralhar um tornado ou bombardear uma vaga de frio. O fim só podia ser aquele e, mesmo assim, acho que tem uma ponta de esperança: a de mudar a atitude dos políticos em relação ao aquecimento global", argumenta Emmerich.

no país de bush.

Como é que este realizador, cujos picos ideológicos se traduziam por grandes planos da bandeira americana, se apanha de repente numa afirmação tão polémica num país como os EUA? Há, de facto, planos da bandeira americana neste filme, mas ela está congelada. "Queria fazer um filme que, para além do divertimento, acordasse as consciências", defende. Com a imprensa europeia, Emmerich deixa-se levar a outras confidências. "Os EUA são o país mais poderoso do mundo e temos aquele presidente, George W. Bush, que não quer saber de outra coisa senão do petróleo", insurge-se. E, numa ousadia que nunca lhe conhecemos antes, retrata no filme a cegueira dos políticos em relação ao aquecimento global num antipático e ficcional vice-presidente americano... que se parece em tudo com o actual vice-presidente dos EUA, Dick Cheney.

Ora, no país de Bush, que recusa assinar a convenção de Quioto sobre a emissão de gás carbónico, não é lá muito bem visto chamar a atenção para o desastre climático que ameaça o planeta se nada for feito. Daí que, antes mesmo de chegar aos ecrãs, "O Dia Depois de Amanhã" tenha dado origem a várias controvérsias nos EUA. Responsáveis da NASA, a agência espacial americana, ordenaram aos seus cientistas que não respondessem a perguntas de jornalistas sobre o filme - mesmo se anularam a ordem, depois de um artigo mordaz do diário "New York Times" sobre o assunto.

Os porta-vozes de Bush e de Cheney entraram em violentas controvérsias com os jornalistas do tablóide "New York Post" sobre o impacte político do filme. E os ecologistas fazem tudo para que este potencial "blockbuster" do Verão americano abra o debate sobre as mudanças climáticas e os danos já feitos ao meio ambiente. "As mudanças já estão a acontecer, não é para o dia depois de amanhã", dizia recentemente Janet Swain, directora do departamento de Energia e Clima no Worldwatch Institutuion, uma organização ecologista de Washington.

a mensagem e a bilheteira.

No filme, o cientista Jack Hall (Dennis Quaid) avisa que o aquecimento global pode provocar uma mudança brusca no clima do planeta. Os seus receios são confirmados quando a camada de gelo polar, em derretimento desde há anos, se fragmenta e precipita enormes quantidades de água fresca no oceano. O contraste entre água tépida e água fria, entre água salina e doce, que permite a formação de uma corrente marítima que neutraliza o sistema climático do hemisfério norte, desaparece, desencadeando assim uma enorme tempestade que traz uma nova era glaciar.

"O que mostramos no filme é rigorosamente conforme aos estudos científicos, excepto numa coisa", previne Emmerich: "Os cientistas prevêem esta evolução num período de cem anos, que no filme foi contraído para algumas semanas, por razões dramatúrgicas. Ora, esta rapidez é absolutamente impossível de um ponto de vista científico, faço questão em frisá-lo"

"O Dia Depois de Amanhã" faz assim um imenso esforço pedagógico e de divulgação científica, nas explicações sobre as mudanças climáticas, ou sobre como o aquecimento global da terra pode provocar uma era glaciar.

Mas que ninguém venha dizer a Roland Emmerich que é um filme com uma mensagem. A palavra parece aterrorizá-lo. "Antes de mais, quis contar uma história fantástica. Se o filme também instrui, para além de divertir, já é outra coisa", esclarece com vigor.

A contradição é só aparente: quando se faz um filme que custa 125 milhões de dólares, a primeira profissão de fé é sossegar o produtor e distribuidor. Neste caso, o mega-estúdio 20th Century Fox. Um daqueles para quem a palavra "mensagem" é já uma perda de dinheiro, porque diminui o número de espectadores potenciais.

O produtor (e compincha de Emmerich) Mark Gordan, assumiu os riscos: "Quando se soube em Hollywood que Emmerich queria fazer um filme-catástrofe, os estúdios rivalizavam para o apanharem. Mas depressa recuaram quando descobriram a nossa exigência não-negociável: Emmerich fica com o exclusivo de 'final-cut'". Ou seja, é o realizador que tem a palavra final. Em tudo.

"Foi isto que mais me seduziu na história, quando Roland me convidou para escrever o guião com ele", conta o argumentista Jeffrey Nachmanoff. "O filme era sobre uma catástrofe natural, mas havia margem para acrescentar sentimentos na história. E aqui a liberdade que Emmerich impôs aos produtores foi preciosa: em vez de ter uma folha de marcha do estúdio a dizer-me que devia haver 15 por cento de réplicas para seduzir os adolescentes ou 25 por cento de cenas para a classe etária de 25-34 anos, pude dar livre curso à minha imaginação".

O filme é sério, mas precisamente por causa desta recusa de uma escrita puramente de marketing tem réplicas humorísticas saborosas. Não obstante, é suposto ser um "blockbuster" - ou seja, respeita à letra aquele crescendo de "suspense" ortodoxo deste tipo de filmes americanos, eficaz, decerto, mas previsível.

Com efeitos especiais espectaculares - a cena de abertura é já um momento de antologia das novas tecnologias - pouco restava em termos de trabalho de actores. A maior parte das cenas foi filmada contra ecrãs azuis, sem que os actores soubessem muito bem o que estavam a fazer. O que reconhece Jake Gyllenhal, que desempenha o papel do filho de Jack Hall/Dennis Quaid, apanhado pela tempestade em Nova Iorque: "Quis fazer este filme para poder dizer que entrei num 'blockbuster' que rende dinheiro!". O pior é que isso só se saberá depois do primeiro fim-de-semana de estreia nos EUA.

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