Pedro Almodóvar, o pior é o melhor dele

Há padres pedófilos, cineastas, travestis, assassinos, mas é falsear tudo querer distinguir vítimas de carrascos. Todos eles, num momento ou noutro, estão de um lado ou de outro, entregues à paixão - isso une-os. Em "La Mala Educación" todos (quase todos, sem abrir demasiado o jogo...) têm um olhar que pode denunciar culpa, mas onde ganha com vantagem (e produzindo efeitos nefastos) a lei do desejo.

"O cinema consegue transformar em espectáculo o pior da natureza humana. E a mim isso agrada-me muito: o pior", dizia ontem Pedro Almodóvar à imprensa em Cannes, abrindo, fora de competição, a 57ª edição do festival e marcando o lançamento do filme no mercado francês (os números das primeiras sessões foram retumbantes: mais 40 por cento de entradas do que em relação a "Fala com Ela"). No caso de Almodóvar, então, o pior é o seu melhor ou algo que não anda longe disso.

"La Mala Educación" não dá o abraço transbordante de melodramas anteriores (não repete o gesto de "Tudo Sobre a Minha Mãe" ou de "Fala com Ela", mas não quer fazê-lo). Dizia-se que era um filme difícil, mais frio, com uma construção complexa. "Uma série de bonecas russas", é a descrição apropriada do realizador. Deve ser, de facto, dos filmes que mais resistem a ser contados. Talvez assim seja suficiente...

Passa-se em duas épocas, a Espanha franquista dos anos 60, num internato chefiado por padres, e a Espanha livre da movida, nos anos 80. Há uma "cena original", digamos assim, o amor entre dois miúdos, Enrique e Ignacio, naquele colégio dos tempos do medo e do castigo na província, onde crianças cantam em coro para serem satisfeitos os desejos dos padres (cantar é apenas o começo...). Esse amor vai ser interrompido. E depois...

Anos 80, em plena movida madrilena: Enrique, agora cineasta, vê entrar pelo seu escritório um jovem actor - Ignacio (o mexicano Gael Garcia Bernal), que o quer rever, que quer ser estrela e para isso está disposto a contribuir com uma oferenda: um argumento que conta a história dos dois, Enrique e Ignacio, quando miúdos, que conta a descoberta do amor e do cinema (filmes com Sara Montiel), a violência do internato. Está pronto para o realizador filmar, é só Enrique querer.

A partir desta visita, vai ser a vida ou a morte para uma série de personagens, reais e imaginadas, e assim a máquina de cinema do realizador Almodóvar põe-se em marcha. Passa da "realidade" à "ficção", estamos no filme ou num "filme dentro do filme", povoado das personagens e dos seus duplos. Em que alguém é sempre outro, ou se imagina outro (Ignacio reinventa-se como "travesti" de nome Zahara, que canta canções de Sara Montiel) ou tem outro rosto, consoante o nível narrativo - descobre-se, por exemplo, que o jovem actor com pretensões a estrela não é Ignacio, é um impostor, mas o resto descubra o espectador...

"Igreja é a pior inimiga de si própria"

Há algo, nesta desmultiplicação, de distorção cubista, mas Almodóvar não deixa que o espectador se perca no labirinto. Sobretudo por causa do jogo de olhares (puro cinema) que atravessa, penetrante, os vários níveis narrativos, em direcção à danação final.

Há um rosto único, finalmente, para todas as caras: o rosto da paixão devoradora, que se não redime os pecados, porque até está na origem de um crime, é o denominador comum entre vítimas e carrascos. É como se fosse um gesto de vida. E é a paixão que inverte posições - o mesmo padre violentador da Espanha franquista, surge, na Espanha da movida, como vítima do seu próprio desejo. Por esta razão, Almodóvar recusa qualquer propósito "anti-clerical" no filme ou que isso seja aproveitado como chamariz. Diz com ironia: "A Igreja não precisa de nenhum ataque porque a Igreja é a pior inimiga de si própria, degrada-se de cada vez que faz uma afirmação pública."

Afastada a denúncia, também afasta a autobiografia. A escola religiosa ou a Madrid da movida, os cenários e ambientes pertencem à sua experiência (em criança foi posto a cantar, menino de coro, sozinho, perante uma sala cheia de padres, como acontece à personagem de Ignacio). Mas não servem uma autobiografia; servem uma síntese abstracta sobre a capacidade de vampirização da memória, da imaginação, do cinema. Nada que Almodóvar não tenha filmado já - podemos estabelecer ligações com o distante "A Lei do Desejo", de 1986 -, mas que só a experiência da maturidade, como se diz, permitiu que o fizesse da forma que o faz agora.

"É um filme de digestão lenta", dizia o realizador, em conferência de imprensa. Queria dizer (feliz pela reacção da crítica francesa, tanto que considerou a França o território de eleição para o seu trabalho, mais do que a Espanha) que não é um filme que se abraça de imediato, como "Tudo sobre a Minha Mãe".

A consequência disto é que "La Mala Educación" pode não nos largar. Trazendo-nos de volta, muito depois de vermos o filme, a história que aí é contada de uma mulher que se atira aos crocodilos num zoo, sem gritos, sem esbracejar, determinada. Não nos largam os olhares de "La Mala Educación"...

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