"Home Movie" com boa dose de monstros e sadismo

"Ondas de Paixão" é um filme "à margem" dos outros filmes de Lars von Trier. Porquê as aspas? Porque é "à margem", mas não necessariamente à margem. Uns dizem que é uma ruptura, outros que é uma continuidade. Será, talvez, uma "ruptura na continuidade". O que é que isto quer dizer?

Primeiro, é o fim da trilogia da Europa. Depois, vislumbram-se já os "tiques" e os "métodos" que defenderia no manifesto Dogma-95 - como não abusar das manipulações técnicas, por exemplo. A câmara deveria ser livre (ao ombro ou à mão, daí o uso recorrente ao digital), a luz teria de ser a original, a música não podia ser introduzida na montagem de som (a única admissível seria a que estivesse no "set"), a roupa tinha de ser a dos actores, entre muitos outros pormenores técnicos que o manifesto propõe como defesa do "cinema de autor" contra a manipulação visual dos "grandes estúdios" americanos. Um dos filmes em que todos estes detalhes são mais visíveis (e foram levados ao extremo) é "A Festa", de Thomas Vinterberg, o único filme verdadeiramente Dogma (consta que, no final da rodagem, Vinterberg assinou um "pedido de desculpas público" por ter "rompido" com algumas regras como, por exemplo, ter acrescentado uma luz num determinado plano ou ter comprado um vestido mais caro para uma das actrizes - afinal era uma festa e tinha de parecer credível).

Isto são pormenores, mas a verdade é que em "Ondas de Paixão" ("Breaking the Waves", de 1996) já é possível prever o que serão os filmes posteriores de Von Trier - como "Os Idiotas", outro expoente máximo do manifesto Dogma. A câmara já anda livre, os planos são muito aproximados, às vezes tão próximos que a imagem ganha um grão (muito característico dos seus filmes) que resulta, precisamente, no "tremelicar" da tela, na indefinição dos pormenores. E é esse grão que torna as personagens quase monstruosas, quase grotescas (não há aqui manipulações para tornar as actrizes mais belas ou mais perfeitas), tão próximo (e tão súbito) é o "zoom". Além disso, os movimentos da câmara (os desejados, e os indesejados de quem não usa tripé) e a montagem de cortes abruptos (sem a lógica "limpa", quase imperceptível do cinema americano) fazem dos seus filmes uma espécie de "home movies" com doses de "terror" - ou seja, filmes caseiros (quase de família), mas crus, violentos, irascíveis.

A próxima vítima

Lars von Trier é todo um pacote - isto é, não é só a técnica que emerge dos seus filmes, é também a ditadura da técnica (e a auto-punição típica do Dogma) imposta aos actores e a si mesmo.

Continuando com a "ruptura", "Ondas de Paixão" é ainda diferente dos outros, porque é o primeiro filme em que Von Trier começa a exploração sádica das actrizes - o que faz correr rios de tinta nos "media" quando um novo filme se anuncia. Já se ouvem perguntas como "Será que ele também vai maltratar a Lauren Bacall, como fez com a Björk?", ou "Quem será a próxima vítima?"

Curiosidades mórbidas à parte, pela primeira vez em "Ondas de Paixão" há uma mulher (neste caso Emily Watson, uma revelação que lhe valeu a nomeação para o Óscar de melhor actriz) que se "submete" às intensas "manias sádicas" de Von Trier - pela primeira vez, porque a seguir vieram as "abnegadas" Bodil Jorgensen (Karen em "Os Idiotas"), Björk (Selma em "Dancer in the Dark") e agora Nicole Kidman (Grace em "Dogville"). "Ondas de Paixão" é o primeiro capítulo da "Trilogia dos Corações de Ouro" (como explicou o próprio Von Trier), histórias de heroínas puras que se sacrificam (quase até ao desespero) por homens, por sexo, por valores (se é que tudo não é apenas um pretexto para o realizador maltratar as suas actrizes...).

A ruptura de "Ondas de Paixão" existe neste ponto - o único em que Von Trier ainda é fresco, em que o "sadismo" ainda é novidade. Porque em todos os outros ele se repetirá (quase até ao infinito) -, o que explica por que muitos dos seus fãs se tenham virado "contra ele", fartos do elogio do seu próprio ego.

Só a fé salvará os homens?

Mas "Ondas de Paixão" é um filme diferente, sobretudo porque é o filme mais belo de Von Trier, uma espécie de expoente, de auge.

Bess (Emily Watson) é uma jovem ingénua (e algo caprichosa) numa comunidade rural e profundamente religiosa. Com o marido, Jan (Stellan Skarsgard), vai descobrir os "mecanismos" do sexo e do desejo - a ponto de ele, mais tarde, dizer à cunhada dela que, de facto, Bess "desabrochou".

Bess tem uma relação especial com Deus - diz que o seu único talento é "saber acreditar". E ela acredita profundamente que é a sua fé que trará Jan de volta a casa (quando ele vai trabalhar para uma plataforma petrolífera no alto mar, sofre um acidente de trabalho e fica paralítico), e que fará com que Jan volte a andar.

Não é só Von Trier que é sádico - ele compõe as suas personagens também a esse nível. Por exemplo? Jan, paralítico, pede a Bess que durma com outros homens e lhe conte os pormenores. E se ela, a princípio, é incapaz de cumprir a promessa, entra depois numa espiral de sadismo que terá consequências: será que, quase prostituindo-se, Bess fará Jan voltar a andar? Será que vale a pena morrer por ele? A fé salvará os homens? Ou o amor? Só Deus (ou Von Trier?) poderá responder.

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