A espada e a fala

Quando, como, é que o cinema passou a ser também um "cinema de depois"? A opus 1 de Jean-Luc Godard, "A Bout de Soufle/O Acossado" (1960) era dedicado à Monogram Pictures, quase obscura produtora de "série b" - porque com a "nouvelle vague" havia pela primeira vez uma geração de cineastas conhecedores da história da arte cinematográfica. Mas também no maneirismo do cinema "em segundo grau" com "Por um punhado de dólares" (1964) de Sérgio Leone, "western-spaghetti", que de facto era um "eastern", paródia óbvia de "Yojimbo" de Kurosawa, já de si um filme de crise em que o mestre japonês substancialmente se autoparodiava retomando "Os Sete Samurais".

A pós-modernidade é uma "condição", um quadro genérico; o "pós-modernismo" é uma estética particular, uma poética da paródia. Um cineasta exponencialmente "pós-moderno" nesse sentido específico é Quentin Tarantino. Uma das razões desse estatuto exponencial também é o modo como no seu trabalho confluem as duas variantes como se enunciou o "cinema de depois", a de Godard e a de Leone e do seu contraponto americano, Sam Peckimpah. Se este último estava já "presente" desde "Reservoir Dogs", "Kill Bill" é o mais esclarecedor exemplo do legado de Leone ("O Bom, O Mau e o Vilão" sobretudo). Mas, Godard?

A companhia de Tarantino chama-se "Band Apart", assim mesmo referida ao título original do filme de Godard "Bande À Part" (1964 também). Para além do facto visível de a dança de Uma Thurman em "Pulp Fiction" proceder directamente desse filme de Godard, há algo de eminentemente godardiano, e que em "Bande À Part", sendo um dos pretextos da intriga, é em especial evidente, o fascínio do "hold up" (uma das figuras de estilo de Godard é mesmo insistir no termo americano "hold up"), que é liminarmente prosseguido no cinema de Tarantino. E não me estou a referir apenas a "assaltos" enquanto pretextos narrativos - estou-me a referir também ao "hold up" generalizado de referências e cenas colhidas aqui e ali no manancial das memórias cinematográficas.

Tarantino é também um caso paradigmático de cineasta pós-moderno por ter sido o primeiro representativo de um novo estado da cinefilia, aprendida e praticada já não nas cinematecas, como na geração da "nouvelle vague", não nas escolas de cinema, como os "movie brats" dos anos 70, mas nas lojas de vídeo. Com isso implicando também um risco do seu cinema, o da paródia generalizada ter como sustentáculo uma colectânea de "pedaços escolhidos", para mais deglutidos com a intensidade particular suscitada pelo "rewind" ou "fast forward".

Para além das peripécias que levaram à apresentação de "Kill Bill" em dois volumes, não deixa de existir uma lógica no facto de ao lançamento em sala do Vol.2 corresponda a edição em vídeo do Vol.1 - porque a circulação incessante, com os suportes domésticos, é um dos fundamentos do seu cinema. Como vários críticos americanos notaram, "Kill Bill" é um projecto que substancialmente se radica na primeira fase da obra de Tarantino, sob esse signo da avidez cinéfila e sem as maiores complexidades narrativas de "Pulp Fiction" e "Jackie Brown".

Receio bem contudo que as marcas da cinefilia também neste caso sejam terreno minado e que até quem comparticipa do apreço de Tarantino por certos filmes possa ser quem fique mais frustrado. Para não desenvolver o compêndio das citações de filmes de artes marciais, fico pela que mais paralisou a minha relação com o Vol.1: a descarada pilhagem de "Tokyo Drifter" de Seijun Suzuki na cena da luta no restaurante. E nem se trata propriamente da luta e da coreografia, mas da "décalage" de revestir essa súmula pop japonesa dos anos 60, incluindo uma particular reapropriação de 007 - e tendo notado isso, foi mesmo uma "no surprise" vir a saber que Tarantino quer agora realizar precisamente um filme de 007.

Se há sempre em Tarantino um gozo filmico, afinal também de analogias godardianas, "Kill Bill Vol.1" é contudo uma maquinaria de colagens e referências. Sucede que o "Vol.2" reintroduz uma característica distintiva das suas personagens: serem "falantes".

O que também é particularmente "tarantiniano", no que ele tem de mais notável como maquinismo cinematográfico, é a distracção generalizada de personagens e espectadores em encadeamento de sequências temporais bem diferentes do "flash-back" clássico (como é que Beatrix saí do caixão em que Bud a enterrou?), é a capacidade de suspensão introduzida pelos diálogos virulentos, pelo excesso de fala das personagens nos próprios momentos em que na asserção mais corrente deveriam tão só entregar-se ao confronto físico: "[to] kill bill" , o intento, é possibilitado pela espada que Hattori Hanzo fez para B. no Vol.1, mas B., "the bride", a noiva, só ultrapassa o seu luto e consuma o gesto de vingança realizando com Bill um duelo que é também "falante"; a vingança serve-se falada. O Tarantino que importa reencontramo-lo no Vol.2

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