Brad Pitt e o calcanhar de Aquiles em "Tróia"

Brad Pitt, "in the flesh", não usa os caracóis em cachos do guerreiro Aquiles que interpreta em "Tróia", e isso ajuda que seja levado a sério quando fala. Ou que ninguém se crispe de embaraço, como acontece perante os diálogos do filme de Wolfgang Petersen - lançado ontem mundialmente e apresentado fora de competição no Festival de Cannes - que se diz "inspirado" na "Ilíada", de Homero.

A culpa não é só do penteado de Pitt, a culpa é também dos diálogos (e da compressão do poema épico feita por David Benioff, autor do argumento), mas o herói mítico que faz o actor americano é um embaraçante calcanhar de Aquiles num filme que custou mais de 170 milhões de dólares. Deve ser uma inevitabilidade na carreira de um actor, mesmo de um grande actor, chegar o dia em que dá o flanco desta maneira (no género do que aconteceu a Keanu Reeves, que nem sequer é um grande actor, no "Pequeno Buda", de Bertolucci, onde também tinha um mau penteado). No caso do Aquiles de Pitt, é um herói por conta própria nas batalhas por Tróia, narcisista como uma "rock star", amuado como um caprichoso rebelde sem causa (o lado James Dean...), e este auto-centramento isola-o numa bolha só dele, afastado das outras figuras míticas - de Ulisses (Sean Bean), Helena (Diane Kruger), cujo rapto, por Páris (Orlando Bloom), precipitou tudo, de Agaménon (Brian Cox), Príamo (Peter O'Toole) e dos outros.

Pitt está demasiado consciente das saias que usa e da carne que elas expõem - algumas cenas, servem de poster de uma "pin up" da Antiguidade. Afecta o "mal de vivre" romântico de uma geração perdida (lá da Grécia de há mais de 3000 anos), mas era preciso, para se aproveitar o anacronismo, que esse existencialismo moderno fosse acompanhado e trabalhado pelo resto do filme.

A Pitt não faltou trabalho, conta. Sim, leu a "Ilíada", fez investigação, falou com especialistas. "Disseram-me que o que Homero pretendia, no fundo, era chegar a esta ideia de que somos todos iguais, estamos todos à procura da mesma coisa. Homero estava à procura de uma ideia de humanidade comum, e essa ideia, hoje, com todos os conflitos que se estão a passar parece-me acutilante", disse Brad, "em carne e osso". É por isso que gosta de História: "Todos os erros dos nossos antepassados estão lá, para aprendermos com eles ou para os ignorarmos."

A culpa não é só dele. É preciso dizer que os deuses, Zeus e o resto do Olimpo, estão fora de "Tróia", e essa decisão dos argumentistas foi motivada pela impossibilidade de adaptar toda a "Ilíada" (mesmo assim, o filme tem quase três horas de duração) e pela crença de que os deuses a falar iriam provocar risos nos espectadores (mesmo sem deuses...). Esta aposta no realismo (mais valia que o caminho fosse o delírio heróico) exigia vigor na definição das personagens, mas não chega a existir - tanto ego e disfuncionalidade passam só como tique; uma evidência física nas cenas de batalha, mas os resultados são pouco impressivos, não vão além do embate habitual de uma equipa de râguebi. Os efeitos especiais, com uma guerra de mil barcos criados por computador, são o que se espera. Quanto à premonição, a tragédia (elementos que Wolfgang Petersen tinha feito respirar em "The Perfect Storm", ele que é um cineasta quase sempre interessante a filmar a fatalidade que envolver grupos de homens) está dita na teatral voz off, mas é apenas texto.

Qual foi a cena mais difícil de filmar, Brad Pitt? Não foram as cenas de batalha, os combates individuais, ou dar saltos (a dar coices com o calcanhar) e conseguir que a saia não revele muito. Ele disse: "O mais difícil foi uma cena de diálogo entre Aquiles e o rei de Tróia, Príamo, e tentar manter um nível crescendo de emoção." De um lado Brad Pitt, de outro Peter O'Toole. Não é preciso explicar, Brad.

Sugerir correcção
Comentar