Viagem no tempo com Ashton Kutcher

Ashton Kutcher é um dos nomes mais falados em Hollywood. Não só por ser o namorado de Demi Moore, mas também por estar na linha da frente das "jovens estrelas em ascensão". Começou por dar nas vistas na TV - graças a uma "sitcom", "That '70s Show", e ao popular "Punk'd", programa de "apanhados" com famosos que criou e apresenta na MTV - e a transição para o cinema também não está a correr mal, como provam as receitas de bilheteira de "Casados de Fresco" ou "A Filha do Patrão".

Mas o êxito não tem significado versatilidade. De projecto em projecto, com variações mínimas, tem construído uma "persona" de "pateta alegre" (nesse sentido, o divertido "Dude, Where's My Car" será o momento essencial), apostando num registo de humor físico próximo do "slapstick", ideal para um corpo algo desengonçado. Por isso, uma tentativa de romper com essa imagem de "loiro burro" (ou "Boy Marilyn", como também lhe chamam) e passar a ser levado a sério constituiria sempre aposta arriscada.

E de facto, no que toca a riscos, a estrela "teen" (que até deixou crescer a barba...) não se fez rogada, ao escolher este "Efeito Borboleta". O projecto de sonho de J. Mackye Gruber e Eric Bress - dois argumentistas que passaram sete anos à procura de financiamento para se estrearem na realização com material, no mínimo, pouco convencional - enfia no mesmo saco teoria do caos, traumas psicológicos, assimilação de memória, deficiências motoras, doenças terminais, responsabilidade e destino. Tudo embrulhado no formato "filme de viagem no tempo", subgénero que, já de si, não será dos mais fáceis de fazer funcionar.

Como seria de esperar perante objecto tão "sui generis", insólito como poucos no recente cinema americano, as reacções têm sido extremadas: nos EUA, a crítica dividiu-se entre rejeição e entusiasmo, e bastará passar os olhos pela "net", onde se multiplicam mensagens acaloradas de detractores e fãs, para se perceber que pode estar a nascer um novo "cult movie".

No centro de tudo está Evan, que em criança sofre recorrentes "blackouts" durante momentos de maior "stress" emocional, bloqueando assim as recordações de acontecimentos traumáticos. "Flashforward" até à universidade, onde o protagonista, já adulto (e com o rosto de Kutcher), é um brilhante, mas solitário, estudante de... psicologia. Um dia, descobre que, ao ler o diário que escreveu enquanto crescia, consegue voltar atrás no tempo e reviver, no corpo do "eu" mais jovem, os seus "buracos negros", possibilidade de saber finalmente o que lhe aconteceu e evitar os dramas daí resultantes.

"Regresso ao Futuro" em versão "trip" de ácido? Já descreveram assim "Efeito Borboleta", sintoma da impossibilidade de "engavetar" algo que corre, demencial, com um pé na fantasia e outro no terror, convocando uma série de ambientes e territórios, do "thriller" à FC, com passagens pelo filme de faculdade e de prisão. É que se a premissa já era bizarra q.b., as coisas tornam-se mais estranhas, à medida que Evan saltita entre espaços temporais, com resultados desastrosos: a cada alteração introduzida no passado, correspondem consequências nefastas para o presente/futuro, tanto o seu, como o da mãe e amigos de infância.

Os cenários imaginados para as realidades paralelas criadas tornam-se crescentemente perversos e há situações saídas de um sonho febril. O desvario alucinado é tal que, a dada altura, é mesmo ver para crer, como se estivéssemos dentro das páginas provocadoras de uma BD daquelas "apenas para adultos" (com a diferença de que aqui a irrisão está ausente, com o tom de negrume sufocante a afastar qualquer hipótese de paródia). Mas apesar de todos os excessos - falta dizer que os tais "episódios problemáticos" envolvem questões delicadas como pedofilia, pornografia infantil e crueldade sobre animais -, há sempre algo que resgata o filme de cair nos precipícios do absurdo. Acima de tudo, o forte núcleo emocional: afinal, é uma história de seres marcados pela tragédia e de um homem que tenta desesperadamente reordenar as peças de uma existência dilacerada.

Em resumo, uma primeira obra ambiciosa e singular, a que falta apenas maior rigor na fusão dos muitos elementos díspares, para que de uma colecção de ideias estimulantes - a infância como repositório de horrores; a mente como espaço em construção - pudesse nascer um todo verdadeiramente coerente. O elo mais fraco acaba por ser mesmo Kutcher, nem sempre à vontade na representação de perturbação interior. Esforça-se, mas o problema é esse, nota-se muito...

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