O coelho esfolado

As representações cinematográficas da figuras de Cristo pautaram-se durante muito tempo por uma imagem icónica muito próximo dos "santinhos", daqueles de colocar entre as páginas de um missal. O principal responsável por essa fixação foi Cecil B. De Mille, o paladino do "peplum" bíblico, cujo "O Rei dos Reis" (1927) não só dissolvia a sua primeira aparição numa aura nebulosa e mística de milagreiro, mas também construía para as cenas fulcrais da ressurreição um significativo aparato de cor, em primitivo technicolor - o perfeito endeusamento em "image d'Épinal".

No entanto, para as gerações posteriores, as marcantes aparições crísticas, no momento em que o cinema se voltara de novo para o os "blockbusters" históricos e bíblicos, com o objectivo de enfrentar o inimigo televisivo, surgem na década de 60: "O Rei dos Reis" de Nicholas Ray capitaliza a fotogenia de Jeffrey Hunter, loiro e de olho azul, como na mais idealizada das estampas religiosas de devoção imediata, arriscando, inclusive, o tão citado remoque que ficou agarrado ao filme quase como um título - "Eu fui um Cristo 'teenager' "; em "A Maior História Jamais Contada" (1965), o mastodonte de George Stevens, apesar da seriedade da interpretação do bergmaniano Max Von Sydow, era ainda de um Jesus seráfico e "nórdico" que se tratava, perdido entre uma acumulação de lugares comuns do imaginário cristão. E já nem falamos do Cristo "delicodoce" de Robert Powell (ainda e sempre os "angélicos" olhos azuis), na mini-série para televisão, "Jesus de Nazaré" (Zeffirelli, 1977), que marcaria a geração seguinte.

Porém, em 1965, com o Cristo "moreno" (o mexicano Enrique Irazoqui) de Pier Paolo Pasolini, em "O Evangelho Segundo São Mateus", tudo se alterara já: humano e sereno, verosímil e dialéctico, prefigurava-se como a figuração ideal para os novos tempos que configuravam a Igreja Católica de depois do Concílio Vaticano II. Longe estava a pompa e circunstância do grande ritual romano. Este era um Cristo pobre, despojado, com um discurso simples e acessível, afastado dos dramatismos histéricos de muitos dos referentes pictóricos, e não só, da representação crística. Filmava-se o "verbo" cristão, a quase franciscana modéstia de um carpinteiro "iluminado", mas sóbrio.

Depois do Cristo pasoliniano, um agnóstico marxista no "reino dos céus", só o de Martin Scorsese, em "A Última Tentação de Cristo" (1988), produziria semelhante abalo: ainda mais "humano" e colérico, o Jesus de Willem Dafoe encontrava a sua força em textos apócrifos e no romance tonitruante do grego Kazantzakis (o mesmo de "Zorba") e reconstruía uma época histórica, muito distante da tradição e da ortodoxia: em vez da Palestina estereotipada da tradição icónica, aparecia um mundo tumultuoso, oriental, "asiático". O Cristo tinha dúvidas e questionava o sacrifício.

o prazer da dor.

Agora, o Cristo fundamentalista de Mel Gibson vem colocar o dedo em outras feridas: regressa-se a uma visão sacrificial e auto-flageladora do passado, com uma violência inaudita; ao optar, em curioso simulacro de realismo, pela língua aramaica e pela intromissão do latim não-restaurado, nas falas entre os romanos, é também o regresso às "línguas sagradas" que veladamente se advoga.

Quase toda a polémica se tem centrado nas acusações de anti-semitismo, pelo modo brutal como se retratam os dignitários judaicos. É um falso problema: o essencial é que se trata de uma visão profundamente reaccionária de Cristo, um regresso aos tempos de antes de João XXIII, se possível a uma concepção do catolicismo masoquista e autoflagelador dos horrores inquisitoriais. Não são os judeus que são "atacados", é todo um trabalho "intelectual" de humanização da figura crística e de tolerante desdramatização da Paixão.

No entanto, se, do ponto de vista ideológico, "A Paixão de Cristo" provoca alguma repugnância, não pode negar-se-lhe o valor de sacudir a indiferença, de arriscar uma visão estética própria, que alguns aproximaram de Caravaggio e da pintura tenebrista espanhola, mas que vai muito para além, próximo de imaginários sado-masoquistas e do "divino marquês", ele próprio. A violência até ao vómito, a representação de Cristo como um "coelho esfolado", o prazer da dor (está ausente o esboço de dúvida evangélica do "passa de mim este cálice, mas faça-se a tua vontade e não a minha"), tudo contribui para convocar fantasmas de uma religiosidade primitiva e acéfala.

Como imagem fílmica, o filme de Mel Gibson oscila entre o rigor dos enquadramentos, com belíssimos "inserts" e alguns grandes planos de inegável impacte (as figuras silenciosas de Maria e de São João são particularmente comoventes), e um certo abandono ao efeito fácil: insuportáveis as câmaras lentas, de que a recompensa de Judas será o exemplo extremo. Não por acaso se elide a ressurreição e se concentra na crucifixão toda a tensão do filme, como se para se ser cristão tivesse que se "repetir" aquele ritual de exposição em carne viva.

Não se tema, pois, o reancender de um anti-judaismo primário, com desejos de holocausto, mas antes o retorno a um cristianismo literal e "analfabeto". Depois dos fundamentalismos islâmicos, só nos faltava que a Cristandade voltasse vários séculos para trás...

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