Gus Van Sant de fora a olhar para dentro

O que faz correr Gus Van Sant? Ou por outra, Gus Van Sant corre atrás de quê, o que é que ele persegue? A estreia de "Elephant", que se não é o melhor filme que o cineasta de Louisville alguma vez assinou é um fortíssimo candidato a tal, levanta mais perguntas do que respostas. Ao contrário de outros cineastas (talvez da maioria), cuja obra tem tendência para se ir "esclarecendo" e encaminhando numa determinada direcção a cada novo filme, Van Sant parece estar sempre a baralhar e a dar de novo, cada filme tem menos o dom de iluminar o que está para trás do que de abrir novas perspectivas futuras e multiplicar os caminhos possíveis.

Há nesta atitude, ou pelo menos neste modo de aperceber a atitude de Van Sant, algo que faz dele uma espécie de "anti-autor" segundo as normas clássicas de definição do estatuto. É impossível encontrar um padrão constante, que se mantenha mais ou menos inalterado ao longo da sua obra, é difícil isolar um tema ou as variações que a partir dele tomam lugar. É possível, claro, associar filmes, ver nalgumas sequências (normalmente, pares de filmes) uma ideia com descendência directa noutro filme seguinte - é, por exemplo, possível olhar para "Elephant" como se ele seguisse por uma fresta aberta por "Gerry" (2002) - mas isso não chega para que se possa dizer que é "tudo a mesma coisa", que entre "Mala Noche" (1985) e o filme que agora estreia tudo o que fez o cineasta que vive em Portland seguiu uma progressão lógica e determinada.

Não há, de facto, muitos cineastas assim, que a cada filme reiterem uma perspectiva pessoal e claramente individualizada, mas que ao mesmo tempo estejam sempre a retrabalhar os dados com que essa perspectiva é posta à disposição do espectador. E, nesse sentido, seria um exercício votado a um fracasso qualquer tentativa de definição de um, e só um, "estilo Van Sant": qual deles, o de "My Own Private Idaho" (1991), o de "Disposta a Tudo" (1995), o de "Gerry"? Até prova em contrário, Van Sant parece mais movido pelo desafio concreto de cada filme e pela respectiva "experiência" específica do que por uma ideia de continuidade mais ou menos fluida do rumo da sua obra.

experiências.

E "experiências", de resto, não faltam no seu currículo, estamos afinal a falar do homem que em 1998 cometeu a proeza única de refilmar plano a plano o "Psycho" de Hitchcock. Apesar de tudo o que se pudesse dizer sobre esse filme e dessa experiência (genial para uns, falhada para outros), talvez a verdadeira raridade desse momento, no que toca ao seu lugar na obra do cineasta, assente no facto de ter sido a primeira (e única) vez em que um filme de Van Sant se pôde, na prática, reduzir a um gesto e à ideia subjacente a ele, à ilustração de um conceito - e aliás, terá sido sobretudo enquanto "conceito" (fosse ele visto como uma aproximação a correntes e procedimentos da arte contemporânea ou como mera "boutade", evocação paródica e sabotadora justamente desse "conceito") que o filme foi discutido e, na maior parte dos casos, admirado.

Mas, neste sentido, "experiências" são também os "flirts" de Van Sant com o "mainstream", tanto mais que as suas origens (e as suas preocupações mais recorrentes) como cineasta e como artista são tudo menos essas. É uma das coisas curiosas da sua obra, esta espécie de circulação entre o centro e as margens (que, na prática, tocou o centro, correndo voluntariamente o risco da completa descaracterização, em filmes como "O Bom Rebelde", de 1997, ou "Finding Forrester", de 2000), às vezes instalando-se num lado ou noutro, noutras estabelecendo uma tangente que baralha os dados ("Psycho", "Disposta a Tudo", mesmo "Gerry" por via da presença de alguém tão reconhecível como Matt Damon).

Ao mesmo tempo, essa questão - o centro e as margens - talvez seja fundamental para definir, ao menos um bocadinho, uma preocupação central no cinema de Van Sant. As tradições da "contracultura" e da "pop" de que o cineasta parece ser oriundo (seja nas vezes em que filmou William Burroughs seja nos telediscos que fez para os Red Hot Chili Peppers) são quase sempre coisas de alguém que está de fora a olhar para dentro, e parece lícito dizer que essa - observador marginal a olhar para o centro, por vezes ("To Die For", "Good Will Hunting", "Finding Forrester") invertendo o ponto de vista - é a posição que mais norteia, filme a filme, o trabalho de Gus Van Sant, numa permanente variação (confusão) do estatuto relativo dessa posição. "Elephant", pelo menos, parece confirmá-lo: é o filme de alguém que encontrou, na margem, o centro de um vulcão.

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