Um Casal (im)Perfeito

Que a vida dos aldrabões é um sonho "bigger than life" (no cinema) já o mostraram filmes como "A Golpada", de George Roy Hill, ou "Ocean''s Eleven", de Steven Soderbergh.

Essa fotogenia, essa difusa nostalgia pelas vidas que outros (não nós, espectadores) têm a coragem de levar, serve para pôr em parada o "glamour" de Hollywood de uma época - Paul Newman/Robert Redford nos anos 70; George Clooney, Brad Pitt e os outros no século XXI.

Fala-se desses filmes porque é neles que se pensa perante "Amigos do Alheio", de Ridley Scott - pelos ambientes de luxo de seda a envolver a arte da aldrabice, porque foi uma referência explícita da produção, finalmente, porque um dos argumentistas, e co-produtor, Ted Griffin, foi também o argumentista do filme de Soderbergh (que, portanto, fica como responsável por ter reactivado uma linha de montagem na fábrica de sonhos americana).

Dá-me um certo aldrabão e eu digo-te que estrela o vai representar - e se ela tem um toque de classe - é a estratégia; como os dois "amigos do alheio" de "The Matchstick Men" são menos "cool" do que obsessivos e compulsivos - até à fronteira do burlesco -, foram chamados Nicolas Cage e Sam Rockwell, actores que têm mostrado muita queda para a obsessão.

O primeiro (Roy) é o veterano, o segundo (Frank) é o "protegido" - eis um "casal perfeito", uma daquelas duplas masculinas (do cinema americano) obviamente heterossexuais, obviamente solitárias e, também obviamente, presas ao afecto de uma conjugalidade.

A vida de Roy (portanto, e por efeito de ricochete, a vida de Frank) é uma enorme confusão. Agorafóbico, sem uma relação sentimental com mulheres há anos, maníaco das limpezas, vê-se obrigado a socorrer-se da ajuda técnica de um psicanalista (é a influência de "Os Sopranos"). Tudo se vai precipitar quando Roy descobre que tem uma filha adolescente - porque ela lhe aparece em casa - e ela vai mostrar-se mesmo filha de seu pai.

Temos então dupla em apuros - onde existe "coolness", existe afinal imperfeição e caos. E era este o motivo de interesse do filme de Ridley Scott: mergulhar, como quem mergulha para dentro de um aquário, para um universo hermeticamente selado pela neurose, onde vivem personagens obrigadas a controlarem a ordem das suas tão irresistivelmente escorregadias vidas.

"Era" porque a queda do realizador não é para a obsessão mas para o "efeito"; não há montagem sincopada, "jump cut", manipulação da luz e do som que Scott evite, num exercício de auto-satisfação que tem o efeito de acentuar as superfícies em vez dos abismos das personagens que quer "mostrar". É claro que temos também actores, mas este é dos casos em que Cage, que parece que andou a estudar os maneirismos titubeantes de James Stewart, nos pode levar à crispação (com Cage às vezes é-se forçado a suspender tudo o que de bem se pensa dele). A incontinência publicitária de Scott não ajuda, só fixa o "tique".

Sam Rockwell (magnífico) é mais "lunar", menos aprisionável, e cresce a curiosidade em relação à sua personagem; mas o filme, infelizmente, não lhe(s) pertence.

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