Queres ser agente da CIA?

"Confissões de uma Mente Perigosa" assinala a passagem de mais um actor americano para o lugar de realizador. Tem-se tornado um hábito, experiências destas sucedem-se umas às outras, já praticamente não são notícia. Embora, por qualquer razão, um filme realizado por George Clooney pareça, a priori, ser qualquer coisa de especial. Sê-lo-á mesmo?

Talvez, sobretudo por não o parecer. Explicando: há qualquer coisa de profundamente simpático na ideia de ver alguém que é uma figura cimeira no "star system" passar para trás das câmaras e assinar um filme que tem os atributos da modéstia (que não são necessariamente "atributos modestos") e podia, não fora o nome célebre a encabeçar o genérico, passar de maneira mais discreta como se fosse obra de um simples artesão (tomando aqui a expressão no sentido mais positivo). Não parece que Clooney tenha tentado encontrar aqui uma "marca", não parece particularmente interessado em deixar evidente o que distingue um filme "directed by" Clooney de um filme "directed by" outro qualquer.

"Confissões de uma Mente Perigosa" não será, por isso, um "filme sem autor" (até porque um candidato a tal se perfila na pessoa do argumentista Charlie Kaufman), mas é certamente um filme que se liberta do peso do nome de quem o assina. Durante a projecção, lembramo-nos de Clooney sobretudo porque ele desempenha também um papel (o contacto, real ou imaginado, do protagonista dentro da CIA), e ocorre-nos que é ele que realiza essencialmente por pequenos "gags" que são referências às companhias cinematográficas mais habituais de Clooney nos últimos tempos - os actores da "galáxia Soderbergh", de Julia Roberts (que tem uma personagem importante a seu cargo) a Brad Pitt ou Matt Damon, dois dos onze de "Ocean's 11" que aparecem num divertido "cameo".

a inevitável fantasia.

Mas o que é que distingue o filme? O facto de se integrar numa corrente bastante interessante do cinema americano dos últimos anos: a procura de referências e "material temático" na história da TV americana, tomada menos pelo anedotário do que pelas óbvias possibilidades que oferece em termos de hipotética "revisão", "reflexo" ou o que lhe quisermos chamar, da história americana das últimas décadas. É preciso dizer, chegados a este ponto, que "Confissões..." é uma variação sobre a autobiografia de Chuck Barris, criador e apresentador de vários concursos célebres da TV americana durante os anos 60 e 70, e figura "sui generis" que se tornou alvo de uma série de "cultos" - e para saber a dimensão do fenómeno, basta fazer uma pesquisa em qualquer motor de busca da net, que logo aparecem dúzias de "fan pages".

Ainda sem entrar nas facetas mais delirantes da personagem de Barris (o facto de ele revelar ter sido um agente da CIA), o modelo biográfico do filme de Clooney permite, através da encenação e reconstituição dos formatos (e dos públicos) televisivos, um olhar enviesado mas intencional sobre as mutações político-sociais da paisagem americana. É certo que a estratégia já foi vista noutros filmes, nalguns casos bastante melhores ("Homem na Lua" de Milos Forman, cuja personagem central, Andy Kaufman, até tem curiosos pontos de contacto com Barris), mas não é por isso que se deve deixar de destacar esta faceta do filme.

Depois, distinguiríamos o modo como Clooney pega naquilo que - a julgar pelo que costuma ser habitual em Charlie Kaufman - parece ser a dimensão essencial do argumento. Ou seja, e no ponto que mais directamente entronca na suposta "vida dupla" de Chuck Barris, o modo como nunca anula (sem ao mesmo tempo alguma vez traçar uma fronteira evidente) a existência de um território delirante, produto de uma espécie de insatisfação existencial. Cuja confissão, aliás, é o ponto por onde o filme começa, com Barris fechado num quarto de hotel a amaldiçoar a "vida inútil" que teve. Nessa medida, "Confissões...", como outros filmes baseados em argumentos de Kaufman (os de Spike Jonze, "Queres ser John Malkovich?" ou "Inadaptado"), é um filme sobre a insatisfação e os conflitos provocados pela "vida real", e sobre os modos, interiores e inevitavelmente fantasiosos, que as personagens encontram para ultrapassar essa insatisfação.

Sam Rockwell, o protagonista, é exemplar na gestão dessa ambivalência essencial, subjacente a todo o filme. Como costuma acontecer em filmes realizados por actores (ou por outra, como normalmente não deixa de acontecer em filmes realizados por actores), há algo de profundamente insubstituível na relação entre um determinado actor e uma determinada personagem, que acaba também por determinar o filme. É a derradeira razão para recomendar o visionamento de "Confissões de uma Mente Perigosa".

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