Demolidor? Isso queria ele

No já longínquo ano de 1964, Stan Lee (argumento) e Bill Everett (desenhos) acrescentaram uma nova figura, Daredevil (Demolidor), ao rol de super-heróis que a Marvel, editora americana de BD, vinha apresentando desde 1961.

Estávamos em plena "Marvel Age of Comics", era de renovação que trouxe uma lufada de ar fresco a uma fórmula gasta, substituindo os tradicionais heróis espadaúdos por personagens trágicas e, espanto dos espantos, humanas. Entre estas, poucas serão mais insólitas que Demolidor: um advogado, cego desde a adolescência mas com os restantes sentidos desenvolvidos até níveis sobre-humanos, mas também um vigilante, mascarado à diabrete num uniforme vermelho (no início, também era amarelo), que vela por Nova Iorque.

Quase 40 depois, surge a adaptação cinematográfica das aventuras de Matt Murdock, numa altura em que a Marvel parece ter descoberto a fórmula do sucesso comercial (como o comprovam os sucessos de "Blade" I e II, "X-Men" e "Homem-Aranha"), ultrapassando a "maldição" que durava já há longos anos. Alguém (ainda) se lembra dos risíveis "The Punisher" e "Captain America"?

Nesse sentido (mas apenas nesse), "Demolidor" é uma aposta ganha, pois facturou mais de 100 milhões de dólares nas bilheteiras americanas. E, como nestas coisas (mas apenas nestas) a vontade do povo é soberana, a sequela já vem a caminho. A julgar pela (suposta) primeira amostra, escusam de se dar ao trabalho...

O filme é um concentrado, de uma pobreza confrangedora, de histórias, personagens e situações da BD original. As matrizes são o trabalho inicial de Stan Lee e a primeira passagem do genial Frank Miller pela série (que salvou do cancelamento, em finais dos anos 70), à mistura com pózinhos de Kevin Smith (sim, o realizador já foi autor de algumas aventuras do "homem sem medo" e tem aqui, tal como Stan Lee, um pequeno "cameo"). No entanto, as ideias de cinema não abundam, tudo é esquemático, estando ausente qualquer noção de ritmo. Nessa tentativa de pôr tudo no mesmo saco, sacrificam-se coisas elementares como a lógica narrativa, com os buracos no argumento a acumularem-se à medida que o filme avança.

De facto, do universo do Demolidor só sobra o título, tal a catadupa de alterações que o filme introduz em relação à BD, desbaratando todo o legado da mítica figura. Não estão em causa questões de purismo (ainda para mais num mundo como o dos "comics", em que as personagens morrem e ressuscitam com uma facilidade impressionante e são (re)moldadas, a seu bel-prazer, pelos criadores que por elas passam), mas porquê mudar apenas por mudar (por exemplo, a cor do vilão-mor, Kingpin, que aqui é negro, moda que, entretanto, parece ter pegado: Halle Berry será a próxima Catwoman...), sem que nada de interessante daí advenha? "Batman" (a quem "Demolidor" tenta ir buscar inspiração na ambiência pseudo-gótica) e "Spider-Man" (um raro "blockbuster" com coração) também não eram fiéis às matrizes, mas o que acrescentavam em nada desrespeitava o espírito original.

O mesmo não acontece no filme de Johnson: Matt Murdock (Ben Affleck) é reduzido a um bebé chorão, sem vestígios da complexidade que apresenta nos livros - um herói que é também um pecador, um mentiroso solitário com inclinações violentas que usa uma máscara para melhor quebrar o juramento solene que fez ao pai ("boxeur" caído em desgraça) de nunca pensar com os punhos, um advogado que viola a lei, passando por cima do sistema que devia representar. Também o seu primeiro grande amor, a grega Elektra, não sai melhor servida: da implacável máquina de matar, resta apenas uma pálida imagem, pouco mais do que ridícula. Ainda para mais, há um erro crasso de "casting" - nada a apontar a fotogenia de Jennifer Garner, mas a actriz (que tem tanto de grega como de chinesa) não podia estar mais afastada da figura da icónica assassina, parecendo ter saído de uma série juvenil de TV anódina.

Este infeliz "Demolidor" é uma pequena (grande) heresia para todos os que cresceram (e crescem) a amar este torturado mártir.

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