Vamo-nos perder

"So, is it a Gus Van Sant movie?", perguntou o escritor e argumentista Barry Gifford ao realizador de "Gerry" quando este lhe tentava descrever o seu último filme. "Então, é um filme de Gus Van Sant?" - e a pergunta fazia ressoar um estigma: a ideia de perda da marca autoral assim que os realizadores ditos "das margens" começam a entrar na engrenagem do sistema.

Como muito dos seus pares (Soderbergh será o mais notório), Van Sant é um desses casos de esquizofrenia saídos do cinema independente americano que, mais tarde ou mais cedo, acabam por absorver o (ou ser absorvidos pelo) "mainstream", e ganhar credibilidade na indústria sem nunca renegarem as origens (até porque no contexto americano, independente é muitas vezes sinónimo de cinema de autor).

Em Gus Van Sant, esse impulso em direcção ao centro começou a fazer-se notar com "Disposta a Tudo" (1995), que o sucesso comercial e as nove nomeações para os Óscares de "O Bom Rebelde" (1997) apenas vieram confirmar. No ano seguinte, "Psico", a réplica que fez do clássico de Hitchcock, concentrava de certa forma os dois movimentos que o realizador tentava conciliar: de um lado, o gosto pelo experimentalismo, num exercício de reprodução quase exacta do filme original que tinha algo de provocação pós-moderna; do outro, o golpe comercial implícito a qualquer revisitação de um clássico.

Portanto, quando Gifford lhe lançou "is it a Gus Van Sant movie?" a propósito de "Gerry", estava, no fundo, a perguntar-lhe pelo regresso do filho pródigo. "Um filme de Gus Van Sant é 'Drugstore Cowboy' e 'My Own Private Idaho', não sei se mais algum pode ser classificado desse modo, talvez 'Até as Vaqueiras Ficam Tristes'. Quando o Barry me fez aquela pergunta, respondi-lhe: 'Bem sabes que Hollywood não quer filmes do Gus Van Sant - quer os seus próprios filmes!'" E sim, acrescentou, "Gerry" é um "Gus Van Sant movie".

O que, enquanto coordenada, não é muito seguro. Se "Gerry" assinala o regresso de Van Sant à produção independente, com uma equipa reduzida e meios espartanos, o mais provável é provocar uma certa desorientação. Arrisca-se a ser o gesto mais radical da sua filmografia, um desses catalizadores de reacções extremadas, não exactamente por não se parecer com nada, mas por não se parecer com quase nada do que se faz actualmente no cinema americano (talvez só Michael Snow), indo buscar a sua inspiração estética a cineastas como o húngaro Béla Tarr, a belga Chantal Akerman, ou o iraniano Abbas Kiarostami, referências assumidas por Van Sant (Tarr é mencionado nos agradecimentos finais). Passou como um ovni pelo Festival de Sundance do ano passado, gerando as críticas mais devastadoras - "Poderá tornar-se no mais odiado filme na história dos festivais de cinema americanos", escreveu-se na altura - e há relatos de espectadores a abandonarem a sala nos festivais europeus por onde tem circulado. E, coisa rara, a não ser em casos problemáticos de recepção doméstica, "Gerry" estreia-se na Europa (mais exactamente em Portugal, já que não há sinais da sua exibição comercial noutros países) antes dos EUA, onde só será lançado, em regime limitado, na próxima semana.

viagem cósmica.

É o quê, então, "Gerry", para gerar tantos anticorpos? Um filme insondável, de uma beleza pictórica fulgurante, feito com tempo - que não tem nada a ver com o tempo dos filmes americanos -, como se resultasse de um só fôlego (como se fosse um longo "travelling"), acreditando que é na impalpável duração dos planos que se pode tentar tactear algo. "O cineasta perdeu todo o sentido de orientação", escreveu a "Variety", sem perceber que se tratava de um elogio. Vale a pena deixarmo-nos perder.

Não existe propriamente uma história, senão a que se pode resumir assim: dois amigos, Gerry e Gerry - Matt Damon e Casey Affleck, irmão de Ben (que também colaboraram na escrita do argumento: tentativa de reactivar a dupla que escreveu e interpretou "O Bom Rebelde"?) -, chegam a um território selvagem e vão seguindo caminho com um objectivo que nunca é explícito - referem-se-lhe apenas como "the thing", a coisa. Acabam por desistir e decidem voltar para trás, para se perderem e andarem à deriva dias a fio numa paisagem árida que vai mudando de feição, entre montanhas e deserto.

É um filme de silêncio, não porque não haja diálogos - que os há, embora sejam lacónicos e acessórios, como se fossem um código secreto partilhado pelos dois, onde o termo "gerry" assume outros sentidos - mas porque é o silêncio que o transporta. É um filme que se abre sobre o vazio e, acima de tudo, sobre o vazio da paisagem, colocando-lhe duas personagens no centro para a deixar actuar. "Quando se tem duas personagens e o deserto é como se fossem três personagens", diz Gus Van Sant. "O deserto torna-se numa coisa à qual se começa a reagir."

Como num "western", o "décor" é utilizado de forma a potenciar a imagem, e a câmara deixa-se muitas vezes envolver nele, reduzindo os corpos das personagens à sua minúscula escala, como uma presença ameaçadora. O "western" é uma evocação possível, como outras no terreno da mitologia americana - os filmes "on the road" que, por sua vez, foram buscar muita coisa ao "western", a literatura "beatnick" - e não só, a começar pelo paralelismo que já foi apontado com "À Espera de Godot", de Beckett, ou a belíssima sequência nocturna em que os dois amigos caminham no gelo, com o cansaço e o desgaste a pesar-lhes nos corpos, que poderá fazer pensar em "Stalker", de Tarkovski.

Tudo pode ser reconhecido, mas também tudo intriga: tratar-se-á de um caso de duplicação, serão Gerry e Gerry, Damon e Affleck, a mesma pessoa, num périplo de (auto) conhecimento e libertação? Nunca o saberemos.

Mas se "Gerry" pode causar um efeito de estranheza, ainda para mais vindo de quem vem, quando Matt Damon, perto do fim, se ergue com um coração de gelo nas costas, talvez se comece a perceber porque é que este é um "Gus Van Sant movie". "Gerry" expõe uma das obsessões mais caras à filmografia do realizador: rapazes em viagem cósmica, atirados para o mundo numa errância emocional. Matt Damon e Casey Affleck em "Gerry" como Keanu Reeves e River Phoenix em "My Own Private Idaho" (1991): no final, depois de um vibrante abraço mortífero - alguém notou que, como Hitchcock, Van Sant filma uma cena de morte como se fosse uma cena de amor e vice-versa -, um corpo há-de ficar abandonado no gelo. E um fantasma há-de ficar a pairar: o de River Phoenix, que no filme de 91 acabaria por cair à beira da estrada, depois de se dar conta que a estrada não tem fim. "This road will never end, it probably goes all around the world."

Sugerir correcção
Comentar