Atrás da Pele

É o território particular de Jean Pierre e Luc Dardenne: a fixação num cinema de classes - numa altura em que já ninguém se lembra delas. Neste melodrama centrado na questão do luto por um filho, a câmara dos irmãos cola-se aos corpos e rostos, esbarrarando numa capa espessa que impede o acesso à psicologia.

É caso para dizer que os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne se agarram à sua maneira de fazer cinema com a mesma insistência com que, em "O Filho", se agarram ao pescoço do protagonista, Olivier Gourmet, o corpo que continua fiel à obra dos dois cineastas. É por lá que o filme começa, com a câmara a encher o ecrã com a nuca de Gourmet, e fica-se com a sensação de que na verdade nunca a larga. Depois de "Rosetta" (1999), "O Filho" é um pequeno apogeu do método câmara-lapa que os belgas Jean-Pierre e Luc têm vindo a acentuar desde que trocaram, com "A Promessa" (1996), a semi-obscuridade dos documentários que faziam pela muito maior visibilidade das ficções que passaram a fazer.

A verdade é que arriscam a redundância. "O Filho" deixa a trabalhar no espectador a interrogação sobre o ponto em que um estilo ou um método deixam de o ser para se transformarem em mera receita funcional. Seria, talvez, injusto dizer que "O Filho" é só uma receita a ser aviada, mas por outro lado parece evidente que esta câmara permanentemente agitada e quase sempre incrustrada nos pescoços dos actores se começa a aproximar bastante de uma via de esgotamento, se não mesmo, como já houve quem sugerisse, de uma involuntária auto-paródia - não apenas do cinema dos Dardenne, mas de toda aquela tradição documental das câmaras leves que remonta aos anos 50 e 60, ou genericamente do cinema de câmara à mão.

Sai-se cansado do visionamento de "O Filho", menos porque a câmara não pare quieta do que por todas as suas voltas e reviravoltas parecerem menos um sinal da sua liberdade do que do seu aprisionamento num esquema formal que os Dardenne se esqueceram de fazer respirar. Vamos ver para onde vão os irmãos belgas no próximo filme, mas em "O Filho" o seu cinema começa a parecer uma coisa muito auto-defensiva, como se fosse uma maneira de esconder uma certa incapacidade para lidar com o espaço e com a "mise-en-scène".

obstinação. Ao mesmo tempo, os Dardenne revelam uma obstinação que não deixa de ser simpática - e se calhar, até passa pela maneira como insistem em agarrar-se à pele dos actores. A sua fixação proletária, a sua insistência num cinema de classes numa altura em que já ninguém se lembra muito delas, criam para os cineastas belgas uma espécie de território muito particular.

É verdade que, mesmo dessa obstinação, "Rosetta" terá sido um ponto alto. Pense-se o que se pensar do filme, goste-se o que se gostar, "Rosetta" é até agora o momento da obra dos Dardenne em que tudo (as preocupações formais e as preocupações temáticas da dupla) se pareceu associar de maneira mais justa e mais evidente. "O Filho" vive um bocadinho na sombra de "Rosetta", o que não só não o favorece muito como, visto nunca fazer um gesto decisivo para sacudir essa sombra, agrava o problema de reiteração de que padece.

No seu melhor, "O Filho" é uma hipótese de melodrama proletário, centrado na questão do luto - e de novo, como em "O Quarto do Filho", de Nani Moretti, ou "In the Bedroom", de Todd Field, a questão do luto pela morte de um filho. O mecanismo dramático do filme põe-se em marcha quando à personagem de Gourmet (um instrutor de carpintaria numa instituição de reinserção de jovens delinquentes) aparece um formando que é nem mais nem menos o rapaz responsável, alguns anos antes, pelo assassínio do seu filho.

Num paradoxo narrativo que os Dardenne exploram com alguma habilidade (muita agitação, pouca explicação), quer esse pormenor quer outros (a relação de Gourmet com a ex-mulher ou mesmo com o miúdo que matou o seu filho) vão sendo revelados aos poucos e o espectador está, na maior parte do tempo, às escuras quanto às motivações da personagem. Ora se mexe com ar agitado, ora fica especado com ar tenso, mas é quase sempre uma espécie de Mona Lisa carpinteira como se, no que pelo menos neste filme é o efeito mais interessante da câmara-lapa dos Dardenne, a extrema proximidade com corpos e rostos fosse a maneira de esbarrar numa capa espessa (os Dardenne descrevem Gourmet como tendo "a envergadura de um Robert Mitchum, um lado predador") que impede o acesso à dimensão psicológica desses corpos e rostos.

Não se pode estar, sequer, seguro de que o final (onde, por alguma razão difícil de explicar, se volta a pensar, como nalguns momentos de "Rosetta", em Robert Bresson, cineasta nos antípodas dos Dardenne) aparentemente pacificado o seja verdadeiramente. Esse reencontro final entre Gourmet e o miúdo assassino é suficientemente vago para que todas as hipóteses (entre a redenção e a ausência de qualquer coisa que minimamente se lhe assemelhe) sejam válidas. Mas é, também, a manifestação da dúvida que "O Filho" levanta: o cinema dos Dardenne procura essa imperscrutabilidade ou, pelo contrário, limita-se a não conseguir ser um cinema de revelação?

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