Quem Matou o Coelho?

A adolescência é uma terra estranha. E "Donnie Darko", um ovni. Ficção científica, filme de terror, coloca um adolescente a falar com um coelho.

É desejo de qualquer cineasta, mas o de Richard Kelly foi profético. Ele disse, antes da sua primeira longa-metragem: "Queria fazer um filme que levasse as pessoas a discutirem-no à saída da sala de cinema, por isso imaginei a história mais ambiciosa, a mais revolucionária, para fazer nome na profissão."

O filme foi um valente "flop" no mercado americano em 2001, embora tivesse chegado ao Festival de cinema independente de Sundance com promessas de "revelação". O facto é que de um dia para o outro o vento mudou, e o que fora anunciado como auspiciosa estreia ameaçava transformar-se em perspectiva comercial duvidosa. Confirmou-se.

É essa a razão por que só mais de um ano depois "Donnie Darko" estreia em países de europeus - como Portugal. E não vai parecer estranho, de facto, se à saída das salas as pessoas, como queria o realizador, falarem umas com as outras exibindo incredulidade (estilo: "O que significa o coelho?").

Na América, um ano depois, há quem olhe para trás com sentimento de perda: passou um ovni e poucos repararam, apesar de terem aparecido na imprensa alguns textos fascinados. Entretanto, o DVD já transformou "Donnie Darko" em filme de culto. E se Richard Kelly vai ter mais dificuldades em realizar a sua segunda longa-metragem, como ele queria seguramente criou nome na profissão.

Não é preciso muito, se calhar, para ser objecto de culto. Basta (mas se calhar isso é muito) permanecer como incógnita irresolúvel: grande filme ou "turkey"? Ou então deixar a pairar no ar uma dúvida obsessiva, do estilo: "O que significa o coelho?" Richard Kelly tinha 26 anos quando, acabado de sair da escola de cinema, realizou um filme que obedece a esses hipotéticos requisitos.

"Dark, darker, Darko", anunciava a promoção, que tanto parecia querer anunciar um filme sobre um herói de BD como sobre um herói de ficção científica. Donnie Darko, adolescente, podia ser qualquer um deles. E mais ainda: personagem de filme de terror ou de filme sobre o terror de crescer no subúrbio (portanto, "filme sobre a adolescência").

filme-fantasma. Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) é um adolescente, e poderíamos dizer que é "perturbado". Quando o conhecemos, acorda no meio da montanha, saindo de um dos seus mergulhos sonâmbulos. Monta na bicicleta, regressa a casa e começam a subir em espiral os acordes premonitórios de "Killing Moon", dos Echo and the Bunnymen.

Middlesex, EUA, ano de 1988. Na televisão, Michael Dukakis e George Bush debatem as suas candidaturas presidenciais. A era Reagan estava a chegar ao fim.

Donnie tem pai, mãe e duas irmãs, e um cenário imaculado: o subúrbio. E tem um "amigo" com quem fala, provavelmente uma visão produzida pela sua esquizofrenia: um coelho chamado "Frank". Donnie fala com "Frank" como James Stewart nos anos 50 falou com um coelho, em "Harvey", de Henry Koster.

"Frank" incita Donnie a cometer patifarias. E anuncia-lhe o apocalipse: o mundo irá acabar em 28 dias, seis horas, 42 minutos e 12 segundos. Começa então a contagem descrescente.

Um dia, Donnie chega a casa e um reactor de avião acabou de vir dos céus para se espatifar sobre o seu quarto. Donnie salvou-se por um minuto. Ou será que não... porque se calhar esse motor é uma antecipação, veio do futuro devido à intromissão de um túnel de tempo, e ainda há-de cair outra vez? (essa sequência, já agora, ao acentuar as potencialidades macabras do filme, dificultou a sua relação com o público americano: "Donnie Darko" estreou-se nos EUA a seguir ao 11 de Setembro...).

Passaram poucos minutos de filme, e para além de "Harvey" já se sentiram em "Donnie Darko" as presenças de "Regresso ao Futuro", "ET, o Extraterrestre", Zemeckis e Spielberg, "Halloween", "The Texas Chainsaw Massacre" ou os filmes de adolescentes de John Hughes dos anos 80. E há-de se ouvir "Love will tear us apart", dos Joy Division.

Richard Kelly cresceu nos anos 80. A sua estreia cinematográfica (que devido ao insucesso retumbante não ficou como anúncio de nova "next big thing") faz-se então segundo um paradigma diferente daquele que se estava a tornar habitual. É que gente como Paul Thomas Anderson, Wes Anderson, David O' Russell, as últimas revelações de Hollywood e arredores, vêm triturando de forma esfuziante as influências dos anos 70. Kelly cresceu a ver o cinema dos "movie brats", "ET" é o seu filme favorito (preciosa coincidência: foi a bebé desse filme, Drew Barrymore, que anos depois produziria "Donnie Darko"). Distingue-o ainda o facto de, ao contrário da citação cinéfila (o processo, afectivo, dos "movie brats" que o influenciaram) ou da máquina trituradora dos novos "jovens turcos", ele "convocar". O que faz o mistério de "Donnie Darko"? O facto de sobrevoar vários génerios nunca se detendo em nenhum, ou não se detendo o suficiente para se fixar - e nós podermos nomear o género. As referências nunca o comprometem, são fantasmas. E, no limite, "Donnie Darko" é um filme sem objecto, ou sobre um objecto-fantasma.

Richard Kelly explicou: "Talvez seja a história de Holden Caulfield ["Catcher in the Rye", de J. D. Salinger] ressuscitado em 1988 pelo espírito de Philip K. Dick, que sempre alardeou que a esquizofrenia e o abuso de drogas quebravam as barreiras do espaço e do tempo."

Há um balanço geracional, isso parece evidente. Kelly, mais uma vez, explicita ao falar em "excesso de materialismo", "cinismo", "hipocrisia", "individualismo da América pós-Reagan" de uma década, os anos 80. Mas o filme é mais insondável do que isso, obriga-nos a caminhar às escuras e a tentar tacteá-lo (e ele encolhendo-se sempre, fugindo à decifração). E, como outros exemplos bizarros do cinema americano [ver texto ao lado], utiliza as dores da adolescência e o terror como parábola civilizacional. Paira um sentimento de desgosto, de perda de inocência (como se a América estivesse a ser corroída, como o "complot" em "JFK", de Oliver Stone). Ajuda ao mistério, para além do coelho e do reactor do avião, as próprias dificuldades do realizador com a estrutura que convocou. Não é certo que todas as zonas de obscuridade tenham sido criadas; não é certo que não sejam também "buracos", incapacidade do realizador que não esteve à altura da ambição.

Não servirá para explicar o sedutor mistério de "Donnie Drako", mas aqui vai: Richard Kelly realizou o seu filme em 28 dias. E é filho de um cientista da NASA e de uma professora que se ocupa de adolescentes perturbados.

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